- Valor Econômico
BC transferiu R$ 548 bi ao Tesouro de lucro que não existe
É interessante observar a reação negativa de alguns analistas à iniciativa do governo, agora adiada, de propor a suspensão temporária da chamada "regra de ouro". Eles parecem ignorar que o dispositivo constitucional só foi cumprido pelo governo, nos últimos anos, com a ajuda do lucro fictício do Banco Central em suas operações com as reservas cambiais e com a devolução dos empréstimos concedidos pelo Tesouro ao BNDES, considerados irregulares pelo Tribunal de Contas da União (TCU).
Pela Constituição, os governos estaduais, municipais e federal estão proibidos de fazer operações de crédito em montante superior às despesas de capital, ou seja, aos gastos com investimentos, inversões financeiras e amortizações da dívida pública. O dispositivo foi chamado de "regra de ouro" das finanças públicas.
O objetivo da proibição é impedir que o gasto corrente (com salários, aposentadorias, saúde, educação, etc) realizado hoje seja financiado pelas gerações futuras, quando as dívidas feitas irão vencer. Os investimentos podem ser financiados com dívidas, pois irão aumentar a capacidade produtiva da economia e garantir fluxos futuros de receita.
Para cumprir a determinação constitucional, o Orçamento das despesas correntes precisa estar equilibrado. Simplificando um pouco, o endividamento público só poderia crescer para pagar as despesas de investimento e as inversões financeiras. (O pagamento de juros é uma despesa corrente. A metodologia utilizada pelo governo, no entanto, considera no cálculo da regra de ouro apenas o pagamento de juros reais. Se o total dos juros fosse considerado, é provável que somente em alguns anos desde 1988, quando o dispositivo foi criado, ele teria sido cumprido. Mas essa é uma questão para os especialistas debaterem.)
O fato é que o Orçamento da União vem registrando déficits primários elevados desde 2014 e eles não foram provocados pelo aumento dos investimentos. Ao contrário. Para acomodar o crescimento continuado das despesas correntes, acima da expansão da economia, o governo vem cortando sistematicamente os investimentos, que atingiram, no ano passado, o nível de 2009, de acordo com os dados do Tesouro.
Mesmo cortando investimentos, o déficit primário do governo federal (incluindo as empresas estatais) em 2015 chegou a R$ 118,4 bilhões, segundo o Banco Central, e subiu para R$ 160,3 bilhões em 2016. Em 2017, deverá ficar abaixo de R$ 130 bilhões. Se for considerada a despesa com o pagamento de juros, o déficit nominal do governo federal ficou em R$ 515,8 bilhões em 2015 e em R$ 478,4 bilhões em 2016.
Como os elevados déficits foram financiados? Obviamente, com a emissão de títulos pelo Tesouro Nacional. E como, mesmo assim, a regra de ouro foi cumprida? Embora o dispositivo seja de fácil entendimento, a sua apuração é complexa. Não há uma metodologia definida em lei, sendo que o Ministério do Planejamento tem uma sistemática e o Ministério da Fazenda, outra. Pela metodologia da Fazenda, o governo pode utilizar os recursos de emissão de títulos arrecadados em exercícios anteriores e que não foram aplicados nas despesas desses anos.
A metodologia permite também que seja utilizado o resultado contábil positivo do Banco Central, destinado ao pagamento de dívidas, reduzindo, assim, a necessidade de novas emissões. O governo pode usar ainda os recursos da remuneração de sua conta única no BC para o pagamento de despesas correntes (aposentadorias, por exemplo) e o retorno dos empréstimos que fez aos Estados, municípios e bancos públicos, como o BNDES. Esses recursos reduzem a necessidade de novas emissões.
É importante analisar o resultado do BC. Em 2008, o governo alterou a metodologia de apuração do balanço da instituição, separando do resultado os lucros e prejuízos nas operações com as reservas internacionais do país. É preciso observar que o BC contabiliza em reais as reservas que possui em moeda estrangeira. Assim, quando a moeda brasileira se desvaloriza frente ao dólar, o valor em reais das reservas aumenta e isto é considerado "lucro"; quando a moeda se valoriza, o valor das reservas diminui e isso é considerado "prejuízo".
Esses lucros e prejuízos são fictícios e unicamente contábeis, pois não houve efetivamente a venda das reservas. De tal forma que, em um determinado semestre, pode haver "lucro" e, no semestre seguinte, prejuízo, dependendo da trajetória do câmbio. Mesmo assim, o "lucro" é transferido pelo BC ao Tesouro, semestralmente, em dinheiro; e o prejuízo é coberto com títulos.
De 2008 a junho de 2017, o BC transferiu, em dinheiro, R$ 548 bilhões ao Tesouro por conta desse "lucro". E emitiu R$ 604,3 bilhões em títulos para cobrir o "prejuízo" do BC (veja tabela acima). Essa montanha de dinheiro ajudou a cumprir a regra de ouro.
Como em 2016, o BC registrou "prejuízo" em suas operações com as reservas, o governo foi obrigado a exigir a devolução dos empréstimos do BNDES. Só assim cumpriu a "regra de ouro". Mas os empréstimos ao banco estatal foram considerados ilegais pelo TCU, pois não passaram pelo Orçamento da União e foram feitos com colocação direta de títulos no BNDES, ferindo a lei de responsabilidade fiscal (LRF).
Qual é a importância de cumprir a regra de ouro dessa forma? O que o governo precisa é aprovar medidas para controlar o crescimento das despesas correntes e reequilibrar o Orçamento. Só assim, a regra de ouro será cumprida.
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