Apesar da precariedade, regras de ‘coordenadores’ eram rígidas
Flávia Tavares | O Globo
Cidades do país abandonaram o centro histórico diante da expansão territorial. Eram quase 14h quando homens e mulheres deram as mãos, formaram uma roda e começaram uma oração, diante da Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. Misturados a voluntários estavam moradores da ocupação do edifício Wilton Paes de Almeida, que desabara após se consumir em chamas na madrugada. Alguns choravam. Outros apenas fecharam os olhos buscando um segundo de descanso depois de mais de 12 horas do início daquele inferno. Do lado de fora do círculo, pessoas brigavam por cobertores, pães. Disputavam garrafas de leite e devoravam marmitas de macarrão.
Sobreviventes do incêndio, que pagavam até R$ 400 de “aluguel”, denunciavam que moradores de outras ocupações da região ou de rua estavam tomando para si as doações e aproveitando para se cadastrar na lista da Prefeitura de São Paulo para entrar numa fila por moradia. Muitos curiosos se aglomeravam, num mórbido turismo de tragédia. Não se tinha notícia, porém, de alguém que falasse em nome dos moradores do prédio que desabou.
Na fachada do edifício que já foi da Polícia Federal havia faixas atribuindo a ocupação ao Movimento de Luta Social por Moradia (MLSM). Apoiada num dos colchonetes fornecidos pela prefeitura, Fábia Rodrigues da Silva, de 30 anos, conta que vivia no terceiro andar. Diz que pagava R$ 400 mensais de aluguel para coordenadores desse movimento — um homem chamado Ananias e uma moça que, por ser evangélica, se apresentava como Irmã Nil.
Fábia trabalha como auxiliar de limpeza num cinema. Morava na ocupação com um filho de 17 anos e uma filha de dez havia quase uma década. Eles alugavam um quarto e dividiam o banheiro com outras famílias. Ela e vizinhos relatam que a Irmã Nil vivia no térreo e foi uma das primeiras a fugir. Contam também que Ananias buscava o dinheiro do aluguel a bordo de um Hyundai Elantra, carro que custa cerca de R$ 80 mil.
EXPULSÕES
Na frente da igreja, Ricardo Luciano, o Careca, dava entrevistas dizendo ser do Movimento de Luta por Moradia Digna (LMD) e se declarando o coordenador daquela ocupação. Quando confrontado com o fato de que se cobrava um aluguel tão alto para condições tão precárias de moradia, Careca ameaçou a reportagem e fez alguns telefonemas. Negou-se a passar o contato de Ananias, da Irmã Nil ou de um advogado do movimento. Pouco depois, Careca saiu sem dar explicações. A ocupação só recebia fornecimento de água depois da meia-noite. Não havia descarga nos banheiros, e ratos eram comuns. As regras impostas pelos coordenadores, porém, eram rígidas. O prédio era trancado à meia-noite, ninguém podia entrar depois desse horário.
— Estava tudo trancado na hora do fogo. Se não fosse um morador de rua arrebentar a corrente, a gente teria morrido lá dentro — diz Fábia.
Os “responsáveis” pelo edifício expulsaram moradores que atrasavam o aluguel.
— Fui expulsa há duas semanas porque atrasei R$ 100 do aluguel. Eu pagava R$ 300. Sendo que o prédio é infestado de rato, não tem esgoto — conta Bárbara Nair, de 19 anos.
Claudio de Souza Queiroz, de 38 anos, morava em um quarto com um amigo. Ambos estão desempregados e fazem bico como ambulantes.
— Entrei pagando R$ 200, agora estava em R$ 300. Mas não vi nenhum dos coordenadores aqui no acampamento agora — relata Claudio.
Um rapaz chamado Antônio, muito agitado, gritava dizendo que há uma máfia de movimentos ilegítimos em ocupações na região:
— Eles brigam para tomar o prédio melhor e cobrar os aluguéis mais caros. Quando invadem um novo, a gente tem que ir junto, para garantir a invasão.
Os moradores do prédio que desabou permaneceram na praça em frente ao incêndio por medo de serem esquecidos em algum albergue. Três funcionários da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social tentavam convencê-los a ir a um abrigo para que fosse feito o cadastro. Todos resistiam.
— Se a gente vai para abrigo, almoça e janta e amanhã ninguém lembra mais de nós. Vamos ficar aqui até arrumarem uma solução — diz Ana Paula, que vende balas e tem uma filha de um ano. — Se precisar dormir na rua, vamos dormir.
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