- Folha de S. Paulo
O homem que fala como quem desfere tiros nunca teve que escolher entre a fidelidade a suas ideias e a segurança pessoal
Jacques Derrida, o filósofo célebre pela desconstrução semiótica, imaginava que “nada existe fora do texto”. Não é preciso rezar pela cartilha dele para reconhecer a importância da linguagem, na política ou na literatura. Diz-se de Ciro Gomes, um compulsivo franco-atirador de adjetivos insultantes, que é boquirroto.
O irmão, Cid, interpreta seu destempero nos registros da “franqueza” e da “sinceridade” (Folha, 21/6). Tomo a sugestão de Cid como guia de análise das palavras escolhidas por Ciro, no Roda Viva (28/5), para qualificar a oposição venezuelana: “Fascista, neonazista, entreguista”. O tema está longe do centro do debate eleitoral brasileiro, mas o curto texto esclarece muito sobre o candidato.
Apesar de Derrida, o contexto sempre importa. No plano da ética pessoal, dirigir insultos a correntes políticas que operam num sistema democrático não é o mesmo que fazê-lo contra opositores perseguidos por um regime autoritário. A opção de poupar o regime chavista de sua artilharia verbal, desviando-a para figuras que enfrentam a repressão, a prisão ou o exílio, desvenda um traço de caráter. A biografia de Ciro ajuda a iluminá-lo.
A carreira política de Ciro começou no movimento estudantil, nos anos anteriores à Lei de Anistia (1979). Havia perigo, mas não para ele, que pertencia à Arena Jovem, base da chapa pela qual concorreria à vice-presidência da UNE.
Ciro jamais experimentou a condição de opositor de uma ditadura. Da política estudantil, seguiu para o PDS, o sucessor da Arena, antes de migrar para o MDB. O homem que fala como quem desfere tiros nunca teve que escolher entre a fidelidade a suas ideias e a segurança pessoal. Isso, antes de tudo, o distingue dos venezuelanos que ele ofende.
Alexander Soljenítsin, um dos mais destacados dissidentes soviéticos, era um nacionalista grão-russo; Václav Havel, dissidente tcheco que se tornaria presidente, um democrata liberal; Vladimir Herzog, assassinado na prisão pela ditadura brasileira, um comunista.
É possível, sem comungar com as ideias deles, defender o direito de expressá-las, que se confunde com o direito das sociedades de debater livremente seu futuro. Ciro optou por outro caminho, repetindo as senhas cunhadas pelo regime venezuelano para suprimir a oposição.
A repressão política vale-se da linguagem, tanto quanto do cassetete e do calabouço. O governo soviético crismava Soljenítsin como fascista. O governo comunista tcheco qualificava Havel como agente da CIA. O governo militar no Brasil classificava Herzog como agente da KGB.
Não existe nenhuma indicação de que os líderes opositores venezuelanos sejam fascistas ou neonazistas. Henrique Capriles pertence ao Primero Justicia, um partido-ônibus que abrange de social-democratas a liberais. Leopoldo López fundou o Voluntad Popular, um partido filiado à Internacional Socialista.
Henri Falcón, candidato oposicionista às eleições farsescas de maio, é um chavista histórico que cindiu com o regime em 2012. O general Raúl Baduel, que cumpre uma segunda sentença de prisão, foi um íntimo colaborador de Chávez entre 1982 e 2007. No Roda Viva, Ciro falou como porta-ofensa de Maduro.
Derrida não deixaria escapar a palavra “entreguista”. Diferente de fascista ou neonazista, “entreguista” não descreve uma ideologia e, rigorosamente, nada significa –mas cumpre função decisiva na linguagem do chavismo.
O termo destina-se a marcar um opositor como agente de interesses estrangeiros, senha crucial para forjar processos judiciais e justificar encarceramentos. Ciro pode ter falado taticamente, a fim de granjear as simpatias do PT. Ou pode ter exercitado a “franqueza” e a “sinceridade”.
Na primeira hipótese, o candidato mostra-se capaz de sacrificar qualquer valor no altar de sua campanha eleitoral. Na segunda, revela que, uma vez Arena, sempre Arena.
-------------------------
Demétrio Magnoli é doutor em geografia humana e especialista em política internacional.
Nenhum comentário:
Postar um comentário