- Eu & Fim de Semana / Valor Econômico
O pensamento superficial de grupos alheios à grande tradição do pensamento crítico imputa ao que não corresponde aos pressupostos ideológicos de seus partidos a qualidade negativa de "ópio do povo". Nestes dias, há quem diga que a Copa tem entre nós essa função inebriante. É para ganhar e drogar.
O "ópio do povo" aparece na "Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel", de 1843, de Karl Marx. Texto escrito cinco anos antes de que ele e Friedrich Engels escrevessem, por encomenda, o "Manifesto Comunista". Um texto que consagrou outra frase feita, a de que a história de toda sociedade é história de luta de classes. Um texto antidialético porque, ao simplificar, conflita com a própria teoria marxiana da história que ganharia consistência aos poucos na obra dos dois.
A metáfora de ópio do povo antecede a definição comunista da história. E não é explicativa. Originalmente, antes de se tornar frase feita, era esforço didático para explicar o fato sociológico mais significativo das sociedades e suas peculiaridades na sociedade contemporânea: a alienação. Isto é, o estranhamento do homem em relação às condições sociais de sua existência, a ilusão e o autoengano que obscurecem ao homem comum sua cumplicidade com o que o subjuga e cega. A dificuldade para desvendar as condições objetivas de existência de todos, mesmo de Karl Marx. Mas o tempo revelaria que a consciência que conta não é necessariamente a consciência teórica e abstrata. São as contradições cotidianas que colocam o agir ao alcance do pensar crítico.
Em outros de seus trabalhos, Marx retorna à metáfora do ópio do povo. Na sociedade industrial nascente, não era incomum que o ópio fosse droga utilizada por mães operárias para adormecer os filhos pequenos que ficavam em casa sozinhos, enquanto elas iam para o trabalho nas fábricas.
A crítica do ópio do povo foi feita por Marx em nome da razão e da possibilidade política da desalienação. Ele não foi o único a se preocupar com as dificuldades para uma consciência racional das condições sociais da vida. Émile Durkheim, sociólogo francês de orientação radicalmente oposta à de Marx, também fundou sua sociologia na possibilidade da consciência sociológica da anomia, a conduta anômica porque orientada por valores desencontrados com a organização objetiva da sociedade, a dificuldade para que o homem comum saiba quem de fato é. O pensamento crítico desvenda as condições de superação da ilusão e do autoengano.
Porque herança da Revolução Francesa e próprio do seu tempo, Marx toma a religião como a alienação da época. Mas ele também se refere à ideologia como instrumento de uma consciência deformada e alienada da realidade. Mesmo ideologia de esquerda e relativa a injustiças sociais.
O próprio Marx era um alienado, fosse nas relações de família, fosse em sua concepção do lugar social da mulher. Os dolorosos problemas de pai autoritário que teve com as filhas são uma indicação. A atitude grosseira em relação à morte de Mary Burns, companheira de Engels, operária, analfabeta e católica, é outra.
Nos momentos potencialmente alienantes das Copas do Mundo, sempre há quem defina o futebol como o ópio do povo. Porém, desde a Copa de 1950, que o Brasil perdeu para o Uruguai, nenhuma Copa revelou-se o narcótico ideológico de amortecimento de nossa consciência social e política. Ganhando ou perdendo, os brasileiros não se tornaram eleitoralmente coniventes com os bons governantes nem com os maus governantes.
Houve notórias tentativas de políticos de "faturar" com vitórias brasileiras. É melancólico o caso do general Garrastazu Médici, presidente no regime militar, justamente por sua frágil concepção das responsabilidades cidadãs de governante. Expôs-se ao ridículo ao tentar instrumentalizar a vitória do Brasil em 1970.
Mesmo assim, ainda nestes dias o ex-presidente Lula da Silva esforça-se como cronista esportivo para angariar prestígio vicário dos êxitos da seleção brasileira nesta Copa do Mundo. É pouco provável que dê certo. Nas últimas Copas, o povo brasileiro tem dado demonstrações claras de que separa futebol de política.
O futebol vem gerando uma cautelosa identidade brasileira separada de política e de religião. Cada vez mais, se torna um meio supletivo de afirmação identitária dos brasileiros, uma busca de alternativa para aquilo que a política e os políticos usurparam do povo, na medida em que usam mal e em proveito próprio o instituto da representação política. Com essa nova e significativa função social do futebol, o povo chuta os políticos. O que não é necessariamente bom, na medida em que com os políticos estamos chutando também a política.
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José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de "O Coração da Paulicéia Ainda Bate" (Editora Unesp/Imprensa Oficial).
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