- Eu & Fim de Semana | Valor Econômico
A polarização e o radicalismo que caracterizaram esta campanha eleitoral, sobretudo para a Presidência da República, não foram suficientes para evitar a exclusão de quase 42,5 milhões de brasileiros do processo eletivo, os que se abstiveram, os que votaram em branco e os que anularam o voto.
São os eleitores politicamente desalentados, os que não julgaram que os candidatos tivessem o adequado perfil para representá-los no exercício do poder. Se somarmos os votos e abstenções dos eleitores desalentados aos do derrotado, o eleito não teve o voto de 89,5 milhões de eleitores. Uma vez e meia o número dos que nele votaram.
Em princípio, democracia é assim mesmo. Eleitor não ganha nem perde. Ou ganha o país ou perde o país. Qualquer que seja o vencedor, vence para representar o povo, que é o dono do poder, e não para representar a si mesmo e os de sua facção. Quem vence tem que pensar também nas concepções de quem perde. Para juntar a todos em nome do direito à diferença e não para dividir o país.
Aqui, há muita confusão a esse respeito. Candidatos de esquerda e de direita não defendem suas candidaturas em nome do que a sociedade carece e quer, mas em nome de suas parcialidades. Faltam-nos partidos verdadeiros, com doutrina e princípios para referência dos candidatos. Falta nesses a formação política e a clareza da vocação, do chamado impessoal ao serviço da pátria.
A vocação política é o colocar entre parênteses opiniões e interesses individuais de quem se candidata. Um deplorável sinal dessa deficiência política brasileira é a corrupção dos que pensam o poder como instrumento de interesses privados. Os que acham que não há limites nem diferenças morais entre o patrimônio público e a propriedade privada.
O eleitor deveria ter a oportunidade de votar naquele que mais se aproximasse de sua concepção do que julga que é bom para o país. Nesta eleição, também foi assim para muitos. Mas não foi assim para a maioria.
A maioria votou em determinado candidato e partido porque era o que lhe restava como opção. Somando os votos de quem votou num ou noutro candidato só no segundo turno, e não no primeiro, temos 28.531.418 votos dos eleitores contrariados. A escolha se propôs entre o menos distante e o não voto: a abstenção, o voto em branco ou o voto nulo.
Quando se vota no nada, como fez a maioria nesta eleição, o direito de voto deixa de ser instrumento de democracia. Se 70% dos brasileiros de todos os partidos dizem que apoiam a democracia e a maioria opta pelo voto desalentado ou votam na opção autoritária, fazem de uma eleição como esta um plebiscito sobre a democracia que não temos.
Se somarmos os votos de cada candidato no segundo turno que não foram os da primeira opção, aos nulos, aos em branco e às abstenções, 66.684.607 eleitores não votaram, de fato, em quem pudesse representá-los no governo da República. Juntos, foram o primeiro colocado, o do vazio da Presidência da República.
São ninguém, não tem um nome, um rosto, uma causa explícita. Mas tiveram 9% mais votos do que o eleito. E quase 20% mais do que o não eleito. De certo modo, esse dado indica que o grande derrotado desta eleição foi o povo, quase metade de um eleitorado de 147 milhões de eleitores não estará representado no governo. Uma maciça renúncia implícita aos direitos políticos.
É claro que, legalmente, o mais votado e declarado eleito pelo Tribunal Superior Eleitoral leva todos os votos e em nome de todos os brasileiros tomará posse e exercerá o poder. A questão é saber quanto vencedores e perdedores têm consciência disso e estão politicamente preparados para abrir mão de suas diferenças em nome da paz social e da democracia política.
As primeiras manifestações do vencedor e do perdedor, no calor da hora e da emoção da crua verdade das urnas, não sugerem que ambos estejam preparados para assumir o pacto implícito da política, que é o de que o que teve mais votos venceu e herdou legitimamente o direito e o dever de governar e de exercer o poder em nome de todos.
Ambos parecem falar em nome de uma sociedade que já não existe. Para um, a sociedade da Guerra Fria, que acabou com a queda do muro de Berlim, quando o comunismo oficial deixou de polarizar a geopolítica do mundo. Para outro, a sociedade do proletariado, enquanto suposto portador do destino histórico da nação. Com a reestruturação produtiva, a desindustrialização e 13 milhões de desempregados, esse proletariado já não está no núcleo do fazer história na sociedade brasileira e, portanto, do que se poderia chamar de destino histórico da nação. Terá que dividir demandas, conformismo e aspirações com a classe média da sociedade de consumo.
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José de Souza Martins é sociólogo. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de “A Sociologia como Aventura” (Contexto).
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