quinta-feira, 1 de novembro de 2018

Saravá disposição à baiana

Jorge Amado ganha biografia que narra sua trajetória de operário das letras e da política, um comunista que sempre amou o diálogo

Jan Niklas | O Globo

Em 88 anos de vida, Jorge Amado (1912-2001) escreveu mais de 40 livros, tornando-se o escritor mais popular do Brasil em sua época. Atuou ainda como jornalista e político, militando por anos no Partido Comunista Brasileiro. Viu desde a ascensão de regimes autoritários pelo mundo, nos anos 1930, até a abertura democrática brasileira na década de 80. Narrar a prolífica vida desse autor, que se confunde com a própria história da literatura e da política do Brasil, é o desafio que a jornalista e ex-curadora da Flip Joselia Aguiar assume no livro “Jorge Amado: uma biografia” (Todavia).

— Como se diz na Bahia, ele era um homem “avexado”, que trabalhava muito. A imagem dele é muitas vezes ligada a essa coisa contemplativa, à preguiça baiana. Dorival Caymmi, que era muito amigo dele, brincava com isso. Mas não: Jorge acordava às 4 horas da manhã, e quando não estava ocupado com livros estava escrevendo cartas ou participando de reuniões políticas —diz Joselia.

Entre dezenas de entrevistas, consultas a arquivos e cartas trocadas pelo autor com nomes como Erico Verissimo, Otto Lara Resende e José Olimpyo, a extensa pesquisa da autora durou sete anos — e rendeu descobertas.

Uma delas é o livro “Rui Barbosa nº 2”, que ainda não havia sido consultado por pesquisadores e estava guardado na Fundação Jorge Amado. Escrito pelo baiano em 1930, teria sido seu segundo romance publicado, mas acabou descartado pelo autor.

—Ele achou que o livro não acrescentava nada ao que já tinha escrito, e passou na sequência para o “Cacau e suor”. O interessante é que nessa obra, que ele supostamente havia jogado no lixo, existe um personagem chamado Archanjo. É o mesmo que vai aparecer, em 1969, no “Tenda dos Milagres”, como Pedro Archanjo.

Uma das questões centrais que acompanharam a autora no processo de elaboração do livro é a origem da grande popularidade alcançada por Amado. Segundo a biógrafa, o escritor teve seu grande momento literário com o lançamento de “Gabriela cravo e canela”, em 1958. O livro entrou para a lista de best-sellers do “New York Times”. No entanto, devido à sua forte inserção na cena da esquerda internacional, parte da crítica atribuiu sua popularidade às ligações com o comunismo.

— Achar que ele se tornou tão traduzido pela ligação com o partido é uma grande simplificação. Ele nasceu numa região cuja grande riqueza é um produto de exportação: o cacau. Na cabeça dele era óbvio que o seu produto, o livro, tinha que ser exportado. Ele tem essa dimensão internacional desde cedo.

PRESENÇA NO MODERNISMO
Segundo Joselia, a aposta em narrativas centradas na afro-baianidade, fugindo do olhar eurocêntrico, seria uma das explicações para a admiração no exterior. Ela lembra ainda que Jorge era muito lido no Brasil, com lançamentos chegando a tiragens de 100 mil exemplares. As conhecidas adaptações para o cinema, TV e teatro, como “Dona Flor e seus dois maridos” e “Gabriela”, impulsionaram ainda mais sua obra, consolidando sua imagem de grande voz literária da Bahia.

Outra surpresa que a escritora revela é a presença do autor na cena do modernismo. Muito próximo a Oswald de Andrade, Jorge acabou se desentendendo com Mário de Andrade.

— Ele reclamava de iniciativas culturais que tinham dinheiro do Estado Novo, como um número especial dedicado a Portinari da “Revista Acadêmica”. Mário defendeu a publicação, e, depois disso, a coisa azedou. Nas trocas de cartas com amigos, Mário se referia a Jorge com alguém que não era mesmo bem quisto por ele. E Jorge passou a dizer que “Macunaíma” era o grande exemplo do artificialismo modernista.

Por outro lado, ela destaca que mesmo com suas firmes posições políticas, Jorge mantinha um perfil conciliador. Com Erico Verissimo, por exemplo, o baiano manteve uma relação de admiração e diálogo duradouro, mesmo estando no espectro político oposto do autor de “Olhai os lírios do campo” —o gaúcho era liberal.

— Ele viveu situações de ditaduras e totalitarismos tanto no Brasil como no exterior. E passa a ser uma pessoa que, de fato, deseja a democracia, uma pessoa que o tempo todo está na luta antifascista. 

Ele dizia que “socialismo sem democracia é ditadura, e nenhuma presta, nem de direita, nem de esquerda, a mesma merda”.

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