quinta-feira, 1 de novembro de 2018

Maria Cristina Fernandes: Bolsonaro encara a política de toga e farda

- Valor Econômico

Governo eleito blinda-se contra credores no Congresso

O cenário já anunciava um outro Jair Bolsonaro. Saíram os varais com lençóis pendurados e entrou uma parede com hera. O candidato estridente falando ao telefone e capturado por um celular agora era o presidente eleito, filmado em surpreendente serenidade pela lente do "Jornal Nacional" em sua casa. Atribuiu o discurso inflamado do domingo anterior à eleição ao clima de campanha, reconheceu a retórica agressiva, e até violenta, e pediu um voto de confiança aos eleitores de seus adversários para que possa se mostrar capaz de fazer diferente e unir o Brasil.

O presidente eleito não vai esperar que se cumpra seu vaticínio de campanha, o de ver o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva apodrecer na cadeia, para tentar tomar seu lugar no imaginário nacional. A começar da autoridade que paira acima de todos os embates de seu entorno. Quanto maiores as divergências, mais se torna imprescindível sua presença administrando ora a favor de um, ora a favor do outro com recurso à religião da qual o lulismo se serviu com mais parcimônia.

A partir de 1º de janeiro, para todas as suspeitas que recaírem sobre seu governo, o principal porta-voz será o apóstolo João, capítulo 8, versículo 32. Projeto saiu do Palácio com isenção de impostos sobre ração animal? Morte com tortura é registrada como homicídio de autoria desconhecida? A Lei de Acesso à Informação não está sendo cumprida? E conhecereis a verdade e a verdade vos libertará.

A Bíblia não bastará até porque seus arautos disputam espaço com outros segmentos da base do bolsonarismo. Quatro dias antes da eleição, a Frente Parlamentar Evangélica lançou um documento de 60 páginas mais bem acabado do que o plano de governo registrado pelo então candidato. Contrapõe-se ao monopólio da representação pelos partidos políticos e palpita em tudo, inclusive na infraestrutura, área sobre a qual os militares da reserva que cercam Bolsonaro parecem ter franco domínio.

Não é a única intersecção que Bolsonaro tem administrado, para consumo público, com serenidade. Se aceito, o convite para que o juiz Sergio Moro integre o ministério cria outra trincheira em seus pelotões. Sob um governo Bolsonaro, a pasta da Justiça recuperaria a Polícia Federal, hoje sob o chapéu do Ministério da Segurança Pública, e teria um papel mais ativo no combate à corrupção.

Além da infraestrutura, os militares se insurgem com todos os poderes sobre o sistema de informações de toda a administração federal desde o decreto que, a 15 dias do segundo turno, criou uma super Abin. Mantida com esta estrutura, a agência, hoje sob o comando do general Sérgio Etchegoyen, encontraria na Justiça um poder concorrente.

A nomeação de Moro não deixaria Bolsonaro inteiramente nas mãos do entorno militar para a vigilância dos aliados do Congresso com quem venha partilhar cargos da máquina pública. Daria ainda ao presidente eleito a chance de usar a luta anticorrupção para eventuais debacles na popularidade decorrentes de uma economia que pode dar trabalho para reagir.

Desde que se iniciou, há quatro anos, a Lava-Jato tem funcionado como um elemento desestabilizador das relações entre Executivo e Legislativo. A ponto de ter inspirado a definição histórica do impeachment para-estancar-a-sangria de Dilma Rousseff. Moro ministro autorizaria Bolsonaro a dizer que não apenas manteve a Lava-Jato como a levou para dentro do governo. E ainda reforça a estratégia governista na relação com o Supremo, Corte que o juiz conhece palmo a palmo.

A ida para a Justiça abriria dois leques para Moro. O primeiro é o cumprimento do estágio probatório para uma nomeação ao Supremo, em 2020, a salvo da contestação de que pulou da primeira instância para a Corte máxima. O segundo é o ingresso na política eleitoral para a sucessão de 2022. Restaria a trinca sobre sua isenção e os propósitos da Lava-Jato: do empurrão no impeachment que catapultou a carreira do presidente eleito à prisão do seu maior adversário, passando pela delação de um dos principais ministros petistas às vésperas da eleição. Mas isso ficará para os livros de história que sobrarem da revisão curricular a ser promovida por Bolsonaro. No poder, Moro se aliaria àqueles que escrevem a história.

A inflação de xerifes fardados e civis no governo já se antecipara na campanha e é proporcional à quantidade de credores que se apresentam como fiadores da governabilidade do presidente eleito. Tanto Michel Temer quanto o presidente da Câmara dos Deputados demonstram boa vontade em fazer acelerar a reforma da Previdência. Menos pelas chances reais de aprovação e mais pelo crédito que esperam do novo ocupante do poder.

Rodrigo Maia enfrentará uma reeleição difícil para a mesa porque o eixo do poder foi sacudido no Congresso. Alvo de inquéritos que podem vir a levá-lo à prisão, Temer já pediu um indulto a Papai Noel. Uma retaguarda reforçada pelos fardados na infraestrutura e o juiz no MJ sugere o caminho que Bolsonaro pretende trilhar para arrancar as reformas que pretende sem ficar refém de seus credores.

Levar a farda e a toga para dentro do governo fortalece o presidente eleito mas não basta para dirimir os conflitos. O futuro ministro da Casa Civil já demonstrou que antagonizará com o superministro da Economia. Não apenas no ritmo das reformas como na mediação de interesses do setor produtivo. Uma semana antes do segundo turno, Onyx Lorenzoni levou a Bolsonaro um grupo de industriais signatários de uma carta em que pedem apoio a "políticas de desenvolvimento". Enfrenta a resistência de Paulo Guedes que quer defenestrar a pauta protecionista e acabar com o Ministério da Indústria e Comércio.

O dissenso extrapola o entorno bolsonarista. O governador eleito de São Paulo, João Doria, já deixou claro que será portador da pauta da indústria, posicionou-se contra o revisionismo que busca abrandar a ditadura e levantou a bandeira branca para unir o que restou do PSDB. Pela primeira vez em mais de duas décadas, São Paulo não está no centro de uma transição presidencial e tem um ocupante obcecado pelo Planalto Central. É o flanco mais desprotegido do capitão.

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