- O Estado de S.Paulo, 6/1/2019
O discurso de posse do chanceler brasileiro, Ernesto Araújo, durou 32 minutos. Todo esse tempo foi dedicado a enaltecer a identidade nacional e a advertir para as ameaças às quais ela estaria exposta. O que é curioso, para alguém que argumenta que “não devemos ter medo”.
As questões centrais da condução da política externa e do comércio exterior não foram endereçadas. O Brasil trocará o multilateralismo pelo bilateralismo? O protecionismo pela abertura comercial? De que maneira pressionará a Venezuela ou a China? Repaginará o Mercosul? Dará um ultimato comercial à União Europeia? Continuamos sem saber.
Araújo prometeu “negociar em posição de força”, o que não é nem sequer lógico: ou se negocia em pé de igualdade ou se impõe a vontade à força. Suas ideias estão alicerçadas nas teses nativistas, segundo as quais o nascimento e a cultura deveriam selar uma identidade homogênea, fonte de legitimidade do poder político. O papel do Estado seria proteger essa suposta unidade cultural das influências externas.
Isso é fantasia. Basta dar uma volta no quarteirão para constatar que existem brasileiros com as mais diversas características, crenças e valores. A visão de mundo de alguns brasileiros se aproxima mais da de alguns alemães, japoneses, libaneses, nigerianos ou bolivianos que as de outros brasileiros. O mesmo se passa pelo menos nos 63 países em que trabalhei.
Moralismo. No caso de Araújo, essas convicções vêm temperadas de um fervor moralista e religioso. Em seu discurso, o chanceler vinculou o conceito de nação ao de nascimento, para se colocar contra o aborto e a homossexualidade.
“O globalismo se constitui no ódio através de suas várias ramificações ideológicas e seus instrumentos contrários à nação, à natureza humana e ao próprio nascimento humano”, apregoou. “Aqueles que dizem que não existem homens e mulheres são os mesmos que pregam que os países não têm o direito de guardar suas fronteiras, que propalam que o feto humano é um amontoado de células descartáveis. A luta pela nação é a luta pela família.”
Ou seja, quem é homossexual ou se vê compelido a realizar um aborto não tem o mesmo direito à nacionalidade brasileira, nem terá a mesma proteção do Estado que as outras pessoas que veem o mundo pelas lentes morais de nosso chanceler, embora o governo continue lhes cobrando impostos. Como chegamos a isso, e quais a consequências dessa doutrina sobre a política externa e comercial do Brasil?
Origem. A política pertence à esfera pública; os valores morais, ao indivíduo. A contaminação de uma pela outra é uma velha artimanha, mas quem mais recentemente a operou, de forma bem-sucedida, foi o ex-deputado republicano Newt Gingrich, hoje aliado de Donald Trump.
Na campanha para as eleições americanas de meio de mandato, durante a presidência de Bill Clinton, em 1994, Gingrich trouxe as questões morais para o centro dos debates, depois de concluir que os republicanos não derrotariam os democratas discutindo economia e outros temas de interesse público.
A estratégia galvanizou o voto conservador, e Gingrich presidiu a Câmara dos Deputados dos Estados Unidos de 1995 a 1999. Até hoje, os republicanos se beneficiam desse método.
A conexão entre nativismo e política levou Trump à aliança incondicional com Israel e à complacência com a Arábia Saudita e a Rússia. Levou também o Reino Unido ao Brexit, uma fantasia impossível de recuperação da soberania supostamente perdida sem prejuízos econômicos, esses sim, bastante palpáveis.
Além de Israel e dos Estados Unidos, o chanceler brasileiro também citou como modelos a “nova Itália”, a Hungria e a Polônia, igualmente governadas por líderes nativistas. Ainda é cedo para dizer quanto desse discurso se materializará em alinhamentos e rupturas. Mas, como o próprio chanceler parece reconhecer, com sua fixação pela etimologia, as palavras são importantes.
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