- Folha de S. Paulo
O desafio maior está no próprio Ocidente, esquecido das lições de um passado que não passa
As forças americanas não desembarcaram na Normandia, 75 anos atrás, para erguer a Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte), que seria fundada em 1949, como fruto da Guerra Fria e da bipartição da Alemanha. Os britânicos não atravessaram o Canal da Mancha, no dia 6 de junho de 1944, para semear o projeto da União Europeia (UE), uma iniciativa franco-alemã de 1951 à qual só se somariam, relutantemente, em 1973. Mas a Operação Overlord desenrolou os fios do novelo da Aliança Atlântica e da unidade europeia. É por isso que a presença de Trump nas celebrações do Dia D, dias depois de oferecer respaldo à candidatura de Boris Johnson à sucessão de Theresa May, sugere uma indagação contrafactual e ilumina uma encruzilhada geopolítica decisiva.
A indagação é: o que fariam Trump, Johnson e o resto dos arautos do brexit em 1944, em 1949 e em 1973?
A Otan nasceu como contraponto à URSS, que convertia os países do leste europeu em Estados-satélites. A Ceca (Comunidade Europeia do Carvão e do Aço), embrião da atual UE, brotou das ruínas da Europa, para enjaular a fera do nazifascismo e prevenir a repetição da guerra entre nacionalismos rivais. Os dois frutos do Dia D surgiram para espantar os fantasmas totalitários de Hitler e Stalin.
Inexistem respostas seguras a perguntas contrafactuais —mas é certo que o nacionalismo do “America First” e da rebelião britânica contra a “prisão europeia” representa o oposto do espírito do Dia D. Sob Trump, tudo indica que os EUA retrocederiam ao isolacionismo tradicional, abandonando a Europa à sua sorte. Sob Johnson, o Reino Unido jamais ingressaria no projeto europeu, anulando-se na posição de aliado periférico dos EUA.
“Os desafios globais que enfrentamos hoje são diferentes nas suas origens e natureza”, proclamou Theresa May, nas celebrações do desembarque na Normandia. O presente é, invariavelmente, diferente do passado, mas a demissionária chefe de governo simula um diagnóstico histórico para, de fato, camuflar a deriva política de seu Partido Conservador. “Make Britain Great Again”: o brexit, empapado de nostalgia imperial, é a versão britânica do nacionalismo trumpiano.
Hitler e Stalin desapareceram numa dobra do passado. Contudo, a democracia representativa, com seu patrimônio de liberdades políticas, públicas e individuais, enfrenta a concorrência global do capitalismo de estado chinês e a ameaça representada pelo autoritarismo populista. A encruzilhada do Dia D apresenta-se novamente, ainda que sob outras luzes.
Tanto tempo depois dos desembarques anfíbios, pela primeira vez desde a guerra mundial, a anexação russa da Crimeia violou a integridade territorial de uma nação europeia. Nas margens da UE, a Rússia de Putin e a Turquia de Erdogan evidenciam a fragilidade da democracia. No interior do santuário europeu, o governo húngaro de Viktor Orbán submete o Judiciário ao Executivo e os veículos de imprensa. Da Itália à Alemanha, passando pela França, partidos da direita nacionalista entoam, mais uma vez, os hinos da “nação de sangue” que pareciam esquecidos.
O retrocesso manifesta-se, acima de tudo, no envenenamento do discurso liberal pelas toxinas do neonacionalismo. Há pouco, o núcleo ideológico de oposição à UE era uma esquerda incapaz de aprender, que a acusava de aprisionar as nações na masmorra do “neoliberalismo”. Isso ainda existe, e explica a acomodação do Partido Trabalhista britânico ao brexit. Hoje, porém, a artilharia letal parte dos liberais rendidos ao nacionalismo, para os quais a UE figura como super-Estado tirânico que impede as nações de se protegeram da “invasão” de imigrantes e muçulmanos.
O desafio maior não se origina lá fora, na China ou na Rússia, mas no próprio Ocidente, esquecido das lições de um passado que não passa. A “promessa da Normandia”, na expressão utilizada por Macron, não tem nenhum valor para Trump. O Dia D terá que ser lutado de novo.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
Nenhum comentário:
Postar um comentário