- Eu & Fim de Semana / Valor Econômico
O nome do jogo deve ser só um: recuperação da política contra a antipolítica
Todas as épocas têm frases que resumem bem o espírito que as alimenta. Para definir o caráter do seu governo, Mussolini dizia que não havia liberdade na Itália, mas os trens chegavam no horário. Trata-se da síntese mais fiel do ideário fascista italiano. O Brasil democrático de hoje é muito mais complexo, pois nele convivem forças plurais e em disputa. Mas uma visão de mundo ganhou centralidade desde 2013: a postura antipolítica. E o recém-lançado livro do ex-procurador da República, Rodrigo Janot, tem o título que a define de forma lapidar: “Nada Menos que Tudo”.
Cabe frisar que essa frase foi escolhida pelo próprio Janot e não por seus adversários. Seus companheiros de Lava-Jato e membros do bolsonarismo assinariam embaixo tal slogan, porque, apesar de terem diferenças entre si e de seu atribulado casamento de ocasião, ambos têm a mesma concepção de política. Nela, predomina uma ideia purista-elitista, maximalista, revolucionária e que enxerga as instituições de uma forma instrumental, isto é, os fins são sempre mais importantes do que os meios formais e legais, e estes são importantes apenas enquanto garantirem o alcance dos objetivos de transformação da ordem política.
O entendimento de cada uma dessas características é fundamental na compreensão do ambiente político dos últimos anos. O purismo diz respeito à visão segundo a qual há pessoas que detêm a verdade e que precisam retirar o controle do sistema político dos “impuros” - a velha política. No fundo, existe uma noção aqui de que há “escolhidos” para fazer a mudança. Esses se veem como mais preparados intelectual e moralmente - daí o elitismo dessa corrente.
O purismo-elitista é forte tanto no lavajatismo como no bolsonarismo, embora o primeiro apresente-se ao público como um grupo mais neutro politicamente, enquanto o segundo adota explicitamente uma definição ideológica de sua posição, delimitando claramente quem é o inimigo - no caso a esquerda e os “comunistas”, cuja representação efetiva é o PT. De todo modo, as conversas reveladas pela Vaza-Jato mostram que os procuradores da República de Curitiba tinham claramente um espantalho a destruir para chegar ao seu objetivo, o que demonstra que a pretensa objetividade desses membros do Ministério Público era falsa.
Claro que o viés ideológico dos dois grupos não é exatamente o mesmo. Mas com a entrada de Sérgio Moro no Ministério da Justiça, hoje o lavajatismo é uma linha subordinada ao bolsonarismo. Alguns dos moralistas da ordem pública fingem que não perceberam isso.
A concepção purista, vale ressaltar, não foi inventada por esses dois grupos no período recente. O PT usou muito esse tipo de discurso em seu período inicial. Muitos hoje dizem que é isso que o petismo deveria recuperar. É preciso ter cuidado com essa nostalgia. Primeiro, porque se essa visão de mundo fosse levada a ferro e fogo, o presidente Lula não teria realizado nenhuma transformação social relevante, porque seu sucesso dependeu de muita conversa e negociação para levar adiante projetos como o Bolsa Família, o aumento do salário mínimo e a manutenção do tripé econômico que garantiu estabilidade com crescimento. Além disso, a concepção purista-elitista permite o contrário do que ela propugna: quando se acha que só o seu grupo tem a verdade, justifica-se tudo, inclusive a corrupção.
O maximalismo é outra característica que marca o ideário de lavajatistas e bolsonaristas. Não por acaso o título do livro de Janot, “Nada Menos que Tudo”. A ânsia de Dallagnol de responsabilizar e prender Lula como o “chefe da quadrilha” revela bem esse sentimento: ou pegamos o maior símbolo dessa era, mesmo que não haja provas (e Janot diz no livro que desconfiava dos argumentos do procurador paranaense), ou a Lava-Jato acabou. É interessante como esse discurso, mesmo depois de tantas revelações do métodos heterodoxos e antiliberais do lavajatismo, ainda faz sucesso com muitos formadores de opinião.
Essa concepção maximalista também está presente no bolsonarismo. Trata-se de mudar tudo, destruindo o PT, a velha politica e talvez o próprio modelo presidencialista vigente, ou então será o fracasso do projeto de mudança. Bolsonaristas ainda defendem isso a despeito da imensa vitória conseguida na reforma da Previdência, que exigiu um tipo de política que é exatamente o contrário do maximalismo.
Um dos mais importantes conselheiros do presidente Bolsonaro, Felipe Martins, expressou recentemente em seu twitter claramente esse projeto maximalista de poder. O colunista Carlos Andreazza, de “O Globo”, fez uma análise fina dessas mensagens e recomendo que o leitor procure esse texto (“O projeto bolsonarista em nove notas”).
Cabe aqui realçar o argumento central do ideólogo oficial: é preciso evitar a estratégia de manutenção da estabilidade das instituições, que segue uma lógica conciliadora, porque foi esse o caminho que levou os governantes anteriores ao desastre e, sobretudo, por essa via não se chegará a mudança efetiva do sistema. Em outras palavras, ou se muda tudo, ou o projeto de Bolsonaro “não passará de uma lembrança distante de um sonho frustrado”, afirma o conselheiro presidencial.
A soma do purismo-elitista com o maximalismo só poderia redundar numa visão revolucionária da política. Lavajatistas e bolsonaristas pretendem ser artífices de uma nova ordem, custe o que custar. O norte revolucionário da Lava-Jato teve duas consequências que são muito claras hoje: o desmonte do sistema político e um reforço decisivo na crise econômica. Obviamente que houve aspectos positivos em todo esse processo de descoberta e punição da corrupção. Mas a ânsia por mudar tudo rapidamente e ao mesmo tempo, independentemente dos resultados e do formato das decisões perante a lei, trouxe igualmente efeitos perversos.
Muitos dirão que as revoluções foram fundamentais para muitos países se desenvolverem e que isso faz parte das dores da mudança. Contudo, essas nações só tiveram um avanço maior do que as demais porque souberam aprender com os erros revolucionários e adotaram um caminho mais incrementalista de transformação do que de saltos radicais. A Inglaterra e a França souberam expurgar os exageros de niveladores e jacobinos para se tornarem democracias desenvolvidas. Precisamos aprender essa lição para ultrapassar o estágio do lavajatismo.
O bolsonarismo tem uma concepção de revolução ainda mais ampla do que a dos procuradores da República de Curitiba. Para quem tinha dúvida disso, o discurso na ONU mostrou claramente que a lista de mudanças propostas pelo presidente, tanto para o plano interno como para o externo, é impressionante, sem similar em nossa história. Nem Vargas apresentou um ideário tão ambicioso. Bolsonaro, na verdade, defendeu ações e transformações na esfera pública, no mundo privado e no plano das relações internacionais, inclusive para além daquilo que o Brasil tem capacidade de influenciar. Não se pode esquecer que maioria dos líderes revolucionários eram megalomaníacos.
A pergunta que fica é como Bolsonaro lidará com a dupla realidade que o circunda: de um lado, um projeto explicitamente revolucionário e, de outro, a necessidade de lidar diariamente com as instituições, com as eleições municipais do ano que vem (assunto chato e antirrevolucionário!) e com as reações da sociedade civil e dos governos no plano internacional. Vale a pena propor uma revolução na política indígena e ambiental quando isso pode custar bilhões de dólares em exportação? Como a história nos mostra, líderes revolucionários regularmente têm de expurgar os que não se comportam segundo a cartilha purista e maximalista. Com quantos aliados o presidente contará daqui a um ano?
Um último ponto une bolsonaristas e lavajatistas: o uso instrumental das instituições. A forma como a Lava-Jato burlou as leis e a própria Constituição, seguindo um caminho heterodoxo em que os fins puros justificam a corrupção dos meios, é muito evidente hoje. Nem precisa mais se fiar nos segredos revelados pela Vaza-Jato; basta ler agora o livro do Janot. Alguns podem chamá-lo de desequilibrado, especialmente porque ele disse com todas as letras que pensou em matar o ministro Gilmar Mendes do STF, mostrando como os revolucionários concebem o mundo institucional. Mas a descrição das ações de procuradores parece muito fidedigna de um modus operandi em que uma corporação estatal jogou contra as regras que regem o Estado para redimi-lo.
Quanto ao bolsonarismo e à família que comanda o grupo, a descrença na democracia é revelada constantemente. E aqui não se trata de um problema ideológico: o presidente Bolsonaro poderia seguir o caminho de outro governo de direita na América Latina, o de Sebastián Pinera, governante do Chile. Mas o mandatário chileno tem apreço pela política e pelo regime democrático. Bolsonaro faz questão regularmente de elogiar torturadores e ditaduras.
O fato é que não mudaremos a política brasileira atual se não acabarmos com o mantra “Nada menos que tudo”. As lideranças de centro e da esquerda, se efetivamente querem alterar a rota da história, precisam começar a pensar em modificar o modus operandi que domina o país, algo que vai além da mera substituição de nomes. Para tanto, o nome do jogo deve ser só um: recuperação da política contra a antipolítica.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e chefe do Departamento de Administração Pública da FGV-SP
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