É
equívoco responsabilizar a covid-19 pelo agravamento da desigualdade
educacional, porque ela sempre foi tão grande, que é impossível ter piorado. É
como dizer que a desigualdade aumentava entre a senzala e a casa grande, em
momentos de epidemia. Os senhores tinham mais remédios, mais cuidados, menos
promiscuidade sanitária, mas a desigualdade entre eles e os escravos era tão
abismal que não piorava. A epidemia mostra a desigualdade, não piora.
Nossa
desigualdade educacional não decorre do vírus, mas do descuido histórico com a
educação dos pobres. Não é por causa da covid que 12 milhões de adultos não
sabem ler “Ordem e Progresso” escrito na bandeira republicana; antes da
epidemia eles já estavam abandonados, condenados à desigualdade em relação aos
doutores. Também não foi o vírus que provocou 100 milhões de analfabetos
funcionais, completamente desiguais em relação aos oito milhões de
universitários.
Nem foi
a covid que provocou a desigualdade em desempenho que há nas universidades, conforme
a escola de base e a carga de leitura que o aluno recebeu em cursos anteriores
ao ensino superior. A covid pode provocar desigualdade entre os que estão em
algumas das raríssimas escolas que se adaptaram ao ensino remoto e aqueles que
estudam em outras que não se adequaram ao ensino a distância, mas a grande
desigualdade já existia, sobretudo entre os que estão dentro da escola e os que
a abandonaram antes de concluir o ensino médio.
Não foi
a covid que montou o frágil sistema educacional em que 60% dos brasileiros
ficam para trás, sem concluir o ensino médio, e no máximo a metade dos 40%
terminam um curso secundário sem aprender o que é necessário para enfrentar o
mundo atual: saber bem português, falar outros idiomas, conhecer matemática,
história, geografia, artes, valores morais, habilidades para exercer um ofício,
conhecer as coisas do mundo. Percebe-se aumento na desigualdade educacional
entre os que farão o próximo ENEM, mas todos que fazem o ENEM, são desiguais em
relação ao conjunto do Brasil sem escolaridade, deixados para trás antes de
concluir o ensino médio.
Algumas
raras escolas conseguiram oferecer um mínimo de aulas remotas a seus alunos,
enquanto a imensa maioria ficou praticamente sem aprendizado, por falta de
equipamentos e preparo dos professores. No entanto, considerando a péssima
qualidade oferecida aos pobres, desde antes da epidemia, é possível dizer que a
educação piorou ainda mais para os que tinham escolas de qualidade e ficaram
com aulas remotas.
A covid
devastou tanto a educação que pode ter diminuído a desigualdade, ao rebaixar a
educação dos ricos. Foi como se houvesse um terremoto em uma cidade, destruindo
a moradia de todos, mas diminuindo a desigualdade, ao nivelar por baixo,
levando os bairros nobres a perderem suas casas, ficarem sem água e esgoto,
como já estavam os bairros pobres. O terremoto não aumenta a desigualdade que
já existia, agrava-a depois, na reconstrução que sempre começa acelerada pelos
bairros nobres, onde já existiam casas, asfalto, água e esgoto, demorando a
reconstrução dos bairros pobres. É isso que pode ocorrer agora com a educação,
aumentando a desigualdade a níveis ainda piores do que antes da epidemia.
Nossa
tarefa é iniciar a reconstrução do sistema devastado pela escola pública que
atende à quase totalidade de nossas crianças. O caminho da reconstrução vai
exigir uma estratégia para substituir os frágeis sistemas municipais por um
robusto sistema público federal. Fazer a revolução que substituirá a atual
“pedagogia teatral” por nova “pedagogia cinematográfica” que use recursos da
teleinformática dos bancos de dados e de imagens, da inteligência artificial,
dos efeitos especiais.
O vírus
devastou toda educação e mostrou uma desigualdade que já existia por nossa
culpa. Aproveitemos para despertar à necessidade de o Brasil dar um salto na
qualidade da educação e fazê-la equitativa, independentemente da renda e do
endereço de cada criança.
*Cristovam Buarque, professor Emérito da Universidade de Brasília
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