O
que Bolsonaro deseja – e assim faz valer – é uma pasta incondicionalmente
subserviente a suas idiossincrasias políticas e ideológicas
Em plena pandemia, o presidente Jair Bolsonaro demitiu dois ministros da Saúde porque eles insistiram em seguir os protocolos profissionais. Os médicos Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich recusaram-se a indicar um medicamento contra as evidências científicas e, por isso, tiveram de deixar a pasta. O presidente Bolsonaro queria um ministro da Saúde obediente às suas ordens, mesmo que elas afrontassem a ciência e a medicina. Foi assim que se chegou ao nome de Eduardo Pazuello para o Ministério da Saúde. Tão logo assumiu a pasta, o general de brigada ampliou, em estrita obediência ao arbítrio do chefe, o uso de cloroquina em pacientes com covid-19.
Ontem,
o presidente Bolsonaro reiterou que, durante seu mandato, não quer o Ministério
da Saúde atuando pela saúde pública. O que ele deseja – e assim faz valer – é
uma pasta incondicionalmente subserviente a suas idiossincrasias políticas e
ideológicas.
Na
terça-feira, em reunião virtual com os 27 governadores, o ministro da Saúde,
Eduardo Pazuello, anunciou a assinatura de um protocolo de intenções para
adquirir 46 milhões de doses da vacina Coronavac, desenvolvida pela
farmacêutica chinesa Sinovac em parceria com o Instituto Butantan. Era uma
decisão estritamente técnica, em benefício da população. No momento, a
Coronavac é a vacina em estágio de testes mais avançado, tendo mostrado, até
agora, os melhores índices de segurança. Com um investimento estimado em R$ 1,9
bilhão, a compra até o fim do ano permitiria iniciar a vacinação já em janeiro
de 2021.
Na
ocasião, Eduardo Pazuello fez questão de esclarecer eventual dúvida ou
desconfiança sobre a origem da vacina. Segundo o ministro da Saúde, a “vacina
do Butantan será a vacina brasileira”, lembrando que o imunizante, tendo sido
desenvolvido na China, será produzido integralmente no Instituto Butantan, em
São Paulo.
O
anúncio do protocolo para a compra dos 46 milhões de doses era uma excelente
notícia para a população. O governo federal, por meio do Ministério da Saúde,
dava sua contribuição para pôr fim à pandemia do novo coronavírus. A boa
notícia, no entanto, durou pouco. Ontem, o presidente Bolsonaro fez questão de deixar
claro que seu governo não trabalha com parâmetros técnicos e que a saúde da
população não é prioridade.
Em
resposta ao comentário de um jovem numa rede social – “Presidente, a China é
uma ditadura, não compre essa vacina, por favor” –, Jair Bolsonaro respondeu
que a vacina “não será comprada”. Em outro comentário, o presidente da
República voltou a negar publicamente a informação dada pelo ministro da Saúde.
Diante do pedido de uma internauta para que Eduardo Pazuello fosse exonerado
urgentemente do Ministério da Saúde, porque ele estaria atuando como cabo
eleitoral de João Doria, governador de São Paulo, Jair Bolsonaro disse: “Não
compraremos a vacina da China”.
Assim,
Eduardo Pazuello tornou-se, num período de seis meses, o terceiro ministro da
Saúde a ser desmentido publicamente pelo presidente Bolsonaro, simplesmente por
agir de forma coerente com o interesse público e as evidências médicas. Por
respeito ao seu nome e, muito especialmente, por zelo com a saúde da população,
era o caso de o general de brigada pedir as contas, assim como fizeram Luiz
Henrique Mandetta e Nelson Teich.
No
entanto, não foi o que se viu até aqui. Logo após os dois comentários do
presidente Bolsonaro, o secretário executivo do Ministério da Saúde, Élcio
Franco, disse que “houve interpretação equivocada da fala do ministro da Saúde”
sobre a compra de doses da Coronavac e que a pasta não firmou “qualquer
compromisso com o governo do Estado de São Paulo ou com o seu governador no
sentido de aquisições de vacinas contra a covid”.
Mas
o presidente Bolsonaro voltou a desmentir ontem mesmo o Ministério da Saúde,
dizendo que mandou “cancelar” o protocolo de intenções assinado na terça-feira.
“Presidente sou eu”, disse, como se a loucura de impedir o trabalho do
Ministério da Saúde pudesse ter alguma similaridade com o exercício da
autoridade. É a ignorância que se faz arbítrio.
A politização irresponsável da pandemia – Opinião | O Globo
Nada
de bom, nada mesmo, pode vir da disputa estapafúrdia entre Doria e Bolsonaro em
torno da vacina
É
um desrespeito com o brasileiro que a pesquisa de vacinas contra a Covid-19 —
questão científica — tenha se transformado numa disputa política estapafúrdia
entre o presidente Jair Bolsonaro e o governador de São Paulo, João Doria.
Caberia às autoridades estabelecer uma estratégia consistente para garantir o
acesso do brasileiro à imunização, afastar o risco à saúde pública e retomar a
atividade econômica. Não parece difícil para um país que dispõe de um programa
de vacinação até há pouco tempo exemplar.
Em
vez disso, o Brasil vem sendo submetido a um festival de oportunismo, ideologia
e insensatez. O pivô do conflito entre Doria e Bolsonaro é a CoronaVac, vacina
da chinesa Sinovac, testada em São Paulo pelo Instituto Butantan. Como está no
estágio mais avançado de pesquisa, Doria se aproveitou dos primeiros resultados
— que garantem a segurança, mas nada dizem sobre a eficácia — para prometer o
que não podia: vacinar a população a partir de dezembro. Pura demagogia.
Bolsonaro
reagiu como quem, desde o início da pandemia, põe ideologia no lugar do
conhecimento. Soltou impropérios contra a vacinação obrigatória (defendida por
Doria), chamou a CoronaVac de “vacina chinesa do Doria” e afirmou ter decidido
“não adquirir a referida vacina”. Mais demagogia.
A
verdade é que, no atual estágio das pesquisas, não se sabe que vacinas darão
certo. Há, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), 198 candidatas,
44 delas em testes clínicos. Dez estão na fase final, a mais crítica e sujeita
a surpresas desagradáveis. Se a China tem mais chance de chegar antes a uma
vacina eficaz, é apenas porque está envolvida em mais iniciativas avançadas.
Mas nada está garantido. O certo, para o Brasil, não é descartar uma ou outra
com base em preferências ideológicas. É apostar em várias.
Pesquisas
levam tempo. O recorde anterior à pandemia é da vacina contra o ebola, que
levou cinco anos até a aprovação. Se alguém obtiver uma vacina em um ano, já
terá sido uma façanha. O temerário é querer acelerar ainda mais pesquisas que
já andam em velocidade jamais vista. Uma coisa é divulgar resultados
preliminares para manter a esperança. Outra é, como fez Doria, prometer o
impossível. Só ao final dos testes uma vacina estará aprovada.
Ao
mesmo tempo, a pandemia trouxe um ingrediente novo: é preciso investir antes na
produção para garantir acesso rápido depois da aprovação. É por isso que o
Ministério da Saúde acertou em destinar R$ 1,9 bilhão à fabricação local da
candidata da AstraZeneca/Oxford e R$ 2,5 bilhões ao consórcio Covax, da OMS.
Mesmo sem saber se dará certo. Assim como é louvável o Butantan se preparar
para fabricar 61 milhões de doses da CoronaVac. Mesmo sem saber se dará certo.
Bolsonaro comete uma barbaridade quando se nega a ampliar essa iniciativa.
Nem
Doria, nem Bolsonaro, nem ninguém pode saber o que dará certo. Politizar
questões científicas já nos custou 155 mil vidas. É inaceitável que custe ainda
mais.
Conter Bolsonaro – Opinião | Folha de S. Paulo
Instituições
não podem permitir risco de falta de vacina por interesse eleitoral
A modesta inflexão de Jair Bolsonaro rumo à conciliação e ao pragmatismo nunca abarcou o enfrentamento da pandemia.
O
presidente aproximou-se do centrão e abandonou o ataque golpista aos demais
Poderes; diante da Covid-19, mesmo depois de infectado, manteve o negacionismo,
a omissão e a propaganda de falsas curas. Mais grave, patrocina agora nova
ameaça à saúde pública motivada por interesse eleitoral.
Nos
últimos meses, o país sustentou-se em um arranjo precário, porém capaz ao menos
de evitar o desgoverno completo nas políticas sanitárias. Com autonomia
assegurada por decisão do Supremo Tribunal Federal, governadores e prefeitos
puderam levar adiante iniciativas para tentar prevenir e controlar o contágio.
Já
o Ministério da Saúde, depois da saída de dois titulares, acabou confiado ao
general Eduardo Pazuello, escolhido pela disciplina e pela fidelidade ao chefe.
Como
já ocorrera com seus antecessores, Pazuello acaba de ser desautorizado de modo
irresponsável e vexatório por Bolsonaro —mais uma vez em busca de fazer
prevalecer sua agenda tacanha e mesquinha sobre qualquer ensaio de condução
técnica e impessoal da crise.
Ao
negar com espalhafato a intenção do governo federal de comprar a vacina da
farmacêutica chinesa Sinovac, o mandatário não enxerga além do objetivo
eleitoreiro de neutralizar a imagem de a solução salvadora vir de São Paulo,
governado por seu provável concorrente em 2022, o tucano João Doria.
A
compra de 46 milhões de doses estava apalavrada, como se sabe, entre o
ministério e o governo paulista, ao qual está vinculado o Instituto Butantan,
responsável pela produção do imunizante no país. Tudo isso explica a
contestação de última hora de Bolsonaro à obrigatoriedade de imunização.
O
presidente, que insistiu na cloroquina como panaceia, mesmo sem que houvesse
eficácia comprovada da droga contra o novo coronavírus, agora recorre à ciência
que renegou para justificar seu veto, em mais uma de inúmeras contradições de
sua gestão.
Está
em jogo a superação de uma calamidade sanitária, econômica e social que aflige
o Brasil e o mundo. Todos os meios disponíveis para tanto precisam ser
utilizados sem hesitação, em nome do interesse da sociedade, acima de qualquer
disputa política e eleitoral.
Se
Bolsonaro insistir em colocar seu interesse político no pleito de 2022 acima da
saúde pública, seguirá fadado ao isolamento e à irrelevância. Restará a
Congresso, Judiciário, estados e municípios tomar as providências inescapáveis
para que os brasileiros não fiquem sem vacina no ano que vem.
Senado foge de seus deveres com desleixo em sabatinas – Opinião | Valor Econômico
O
Senado pode se redimir pondo um fim ao mandato de Chico Rodrigues
O
Senado abre mão, mais uma vez, de exercer seriamente seus deveres
constitucionais, ao proteger membros envolvidos em malversação de recursos e
corrupção, e ao se abster de circunspecção e interesse nas sabatinas para
aprovação de candidatos a importantes cargos da República. O mutirão para
inquirir e aprovar membros das diretorias das agências reguladoras, as manobras
para encobrir o vexaminoso caso do senador Chico Rodrigues (DEM-RR), apanhado
com dinheiro na cueca, e a aprovação praticamente a priori, da primeira
indicação do presidente Jair Bolsonaro para o Supremo Tribunal Federal (STF)
são os exemplos recentes das ações entre amigos e do baixo espírito republicano
lá predominante.
Porque
os partidos não respeitam princípios éticos, ou sequer estabeleçam regras e
limites a seus membros, o Senado cobre com o manto de sua autoridade malfeitos
de senadores e referenda o baixo grau de institucionalidade de escolha tão
grave como a aprovação de ministro do STF.
O
Supremo, ao responder a demandas de investigações policiais, tem com frequência
decidido pelo afastamento de parlamentares, competência do Congresso. O último
e rumoroso caso foi o do senador Chico Rodrigues. A Polícia Federal queria sua
prisão pelo desvio de recursos, estimados R$ 20 milhões, para o combate à
pandemia em Roraima. Em operação de busca, os policiais se depararam com a
repugnante tarefa de retirar R$ 32,2 mil da cueca do senador.
O
presidente do Senado, Davi Alcolumbre, mostrou indignação e surpresa, não com o
valhacouto do dinheiro nem de como foi obtido, mas com o STF e condenou sua
interferência. Rodrigues, segundo a defesa de seus advogados, foi vítima do
“terrorismo policial”. Em campanha para se reeleger no comando da Casa, vedada
expressamente pela Constituição, Alcolumbre e seus pares manobram para dar
tempo ao tempo e livrar Rodrigues da enrascada. Rodrigues era membro da
Comissão de Ética e de Decoro Parlamentar da Casa e membro suplente da comissão
mista que acompanha ações do governo contra a pandemia. Vice-líder do governo,
estava nos postos convenientes.
Jayme
Campos (DEM-MT), presidente da Comissão de Ética, propôs que Rodrigues se
licenciasse e ele o fez por 121 dias, prazo adequado para que seu filho, Pedro
Rodrigues (DEM-RR), também investigado por desvio de recursos, o substitua.
Como já havia feito com Aécio Neves, enredado em múltiplas denúncias de
corrupção, negando seu afastamento, o Senado agiu agora para proteger os pares,
usando a defesa da independência como salvo-conduto para falcatruas.
Não
é estranho, mas até lógico, que senadores que não se encandalizaram com a
proeza indecente de Rodrigues, estabeleçam o mesmo padrão de descaso na
aprovação de indicações para cargos da República. Em mutirão, o Senado
sabatinou às pressas 20 indicados para agências reguladoras, e aprovou Jorge
Oliveira, empregado longevo de Jair Bolsonaro quando ele era um deputado
medíocre, para ministro do TCU, que dará pareceres sobre as contas do governo.
Igualmente
grave, mas rotineiro, foi a aceitação praticamente prévia de Kassio Nunes
Marques, sabatinado ontem pela CCJ do Senado para ministro do STF. Os
patrocinadores da candidatura são suspeitos, como o senador Flavio Bolsonaro,
acusado por “rachadinhas” na Alerj, e o deputado Ciro Nogueira (PP-PI),
veterano figurante de investigações policiais.
O
ritual semi-secreto para sua aceitação começou em um jantar entre Bolsonaro,
dois ministros do STF, Gilmar Mendes e Dias Toffoli, e Alcolumbre, quando
Kassio foi apresentado. Depois veio a “campanha” nos gabinetes dos senadores,
onde Kassio foi bem, a ponto do Eduardo Braga (MDB-AM), ter antevisto nele a
perfeição divina encarnada, como pôs em seu parecer: “Não tomei conhecimento de
um único defeito em suas decisões”.
O
candidato é acusado de plágio em dissertações e de ter feito dois breves e
inexistentes pós-doutorados no exterior de poucos dias após ter concluído o
doutorado. Com o “notório saber” e “reputação ilibada” sob questão, Kassio
disse que houve incompreensão das “regras educacionais europeias”, respondeu a
quase tudo sem se comprometer, como é praxe em sabatinas desatentas, e, nas
poucas vezes em que foi assertivo, disse ser contrário ao aborto.
É
dessa maneira irresponsável que se moldam os poderes da República. No caso de
Rodrigues, o Senado pode se redimir, pondo um fim a seu mandato.
A democracia boliviana parece ter
saído revigorada das eleições deste ano
Quase um ano após a turbulenta renúncia de Evo Morales, sob suspeitas de ter manipulado as eleições de 2019, o povo boliviano elegeu no primeiro turno o candidato de seu partido, Movimento ao Socialismo (MAS), Luis Arce. Considerando as tensões desencadeadas pelos desmandos do regime de Morales e do governo que lhe sucedeu, a relativa tranquilidade da transição foi surpreendente, em se tratando da tumultuada democracia boliviana.
Morales – com Arce no comando da economia durante
quase todos os 14 anos em que esteve no poder – aproveitou habilmente o boom
das commodities: o país aumentou seu PIB de US$ 9,5 bilhões para US$ 40,8
bilhões e reduziu a pobreza de 60% para 37%.
Mas os ganhos não vieram sem custos para as
instituições democráticas. Solapando, com a anuência de seus sabujos no
Tribunal Constitucional, um referendo que lhe negou o direito a um quarto
mandato, Morales concorreu em 2019. Ante suspeitas de fraude endossadas pela
Organização dos Estados Americanos, uma série de protestos violentos eclodiu
nas ruas, e Morales, pressionado pelas Forças Armadas, renunciou, refugiando-se
no México e depois na Argentina.
A senadora direitista Jeanine Áñez assumiu a
presidência interina garantindo que seu único objetivo era preparar eleições
limpas, mas se aproveitou do poder para acossar seus rivais e viabilizar sua
própria candidatura, que acabou abortada com a gestão desastrada da crise
pandêmica.
A corrida eleitoral foi marcada pela polarização
entre o MAS e seus opositores de direita dispersos entre oito candidaturas. O
principal adversário de Arce foi o ex-presidente de centro-direita Carlos Mesa,
que inclusive parecia levar vantagem num eventual segundo turno. Boatos e
acusações correram soltos, levando a temer o pior.
Mas tão logo as urnas foram abertas, apontando a
vitória de Arce, as autoridades serenaram rapidamente os ânimos. Áñez
reconheceu a vitória na própria noite da eleição e, com uma ou outra exceção,
como a do candidato reacionário Luis Camacho, os adversários também
referendaram o pleito.
Tudo indica que o MAS, por sua vez, renunciou a uma
atitude revanchista, prometendo uma gestão conciliadora. O próprio Arce
representa a ala mais pragmática do partido. O porta-voz do MAS, Sebastián
Michel, declarou que o estilo do novo governo será outro, mais aberto ao
diálogo com a oposição. Ele, assim como a presidente do Senado, Eva Copa,
afirmam que o partido pretende retificar os erros do passado e que não é hora
de falar em um retorno de Morales.
Há esperanças bem fundadas de renovação. O fato de
que os radicais de direita foram desmoralizados nas urnas é alvissareiro e há
elementos para uma agenda comum entre o governo e a centro-direita, como o
combate ao narcotráfico ou o emprego das reservas de lítio. Arce não deve ter o
mesmo domínio sobre o Congresso que tinha Morales. Se isso pode levar a um
impasse, também é uma oportunidade para robustecer as negociações políticas.
A habilidade do governo e da oposição de construir
consensos será indispensável para afastar o espectro do caudilhismo. Morales
está enfraquecido, entre outras coisas por acusações de estupro e financiamento
de terrorismo, mas ainda conta com o apoio da ala radical do MAS e de setores
da população favorecidos por seu populismo. Essas forças podem ser inflamadas
caso a recuperação econômica não seja bem arquitetada. O déficit fiscal foi
agravado com a pandemia e, diferentemente de quando ascendeu ao poder em meados
dos anos 2000, o partido não contará com o boom das
commodities e precisará forçosamente cortar gastos.
O novo presidente tem o perfil e as condições
técnicas para conduzir esta retomada, mas precisará concertar as condições
políticas. Ao elegê-lo, o povo boliviano fez uma opção pelo pragmatismo do
regime de Morales – ao mesmo tempo que os votos à direita consolidam uma
aversão ao seu bolivarianismo. Caberá a Arce moderar o radicalismo de seus
partidários e atrair o apoio dos moderados na oposição. De todo modo, a
democracia boliviana parece ter saído revigorada das eleições.
O ensino superior e o desemprego – Opinião | O Estado de S. Paulo
Cenário
revelado pela Pnad Contínua é preocupante para o futuro do Brasil
Os últimos números da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua revelaram que a taxa geral de desemprego foi de 13,3% no segundo trimestre de 2020, atingindo 12,8 milhões de pessoas. É um número muito alto, para um país que já tem um contingente de 32 milhões de trabalhadores informais, que atuam por conta própria e sem carteira assinada.
A
situação é ainda mais preocupante entre os jovens de 18 a 24 anos, pois a taxa
de desemprego ficou em 29,7% – ante 25,8% no mesmo período em 2019. Outra faixa
etária muito afetada pelo aumento do desemprego foi a dos 25 aos 39 anos,
atualmente com 35,3% de desocupados. Entre os diferentes problemas acarretados
por esse avanço do desemprego, dois merecem atenção.
No
caso dos jovens de 18 a 24 anos, muitos recém-graduados fizeram cursos
superiores tradicionais, cujos currículos estão desconectados das tecnologias
advindas com a Indústria 4.0. Por isso, em plena pandemia eles têm sido
obrigados a buscar empregos sem a devida formação, num período em que as vagas
disponíveis exigem habilidades específicas. Esse é o motivo pelo qual cerca de
50% dos brasileiros com graduação completa estão trabalhando em atividades que
não exigem formação superior, como mostra o IBGE. E, apesar de as autoridades
educacionais terem consciência desse problema há tempos, pouco têm feito para
reformular a educação superior, que em muitas áreas continua carente de cursos
interdisciplinares.
Atualmente,
os cursos de graduação duram de quatro a cinco anos e são divididos em áreas
tradicionais, como ciências exatas, biomédicas e humanas. De um modo geral, o
primeiro ano é dedicado às disciplinas propedêuticas. O segundo é destinado às
chamadas teorias gerais. O terceiro é voltado ao aprofundamento do nível de
formação técnica. E os dois últimos envolvem a opção por áreas de
especialização e a busca por estágios e postos de trainee.
O
problema é que, como as mudanças tecnológicas ocorrem em ciclos temporais cada
vez mais curtos, quando os estudantes ingressam num curso superior a tecnologia
predominante é uma. Já quando se formam, ela é outra, o que os leva a se
diplomar com uma formação tecnológica defasada. Dito de outro modo, quando
fizeram o vestibular, depois de concluir um ensino médio com currículo
ultrapassado, optaram por um cenário de mercado profissional que já não existe
no ano em que se formam. Esse é um dos fatores responsáveis pelas altas taxas
de evasão entre o primeiro e o terceiro ano no ensino superior – a taxa é de
60% nas universidades privadas e de 30% nas universidades públicas.
Já
no caso dos trabalhadores da faixa etária entre 25 e 39 anos, o problema é de
requalificação profissional com base nas novas tecnologias. No Brasil, a
pós-graduação foi por muito tempo basicamente acadêmica, voltada para a
formação de docentes e pesquisadores, e não de técnicos. E, além da resistência
de alguns governos à expansão dos mestrados profissionalizantes, os cursos
técnicos quase sempre ficaram circunscritos ao nível médio. Só nos últimos anos
é que começaram a ser postas em prática experiências mais avançadas de
requalificação profissional e aperfeiçoamento de habilidades exigidas pela
revolução tecnológica e de acordo com a chamada internet das coisas.
Como
emprego é vital para a retomada do crescimento econômico, esse é um cenário preocupante
para o futuro do Brasil, num momento em que os países desenvolvidos e muitos
países em desenvolvimento continuam investindo em capital humano para
aproveitar as oportunidades que surgirão quando a pandemia passar. Entre nós,
enquanto isso, o governo permanece sem rumo, o ano letivo está perdido e o
Enem, que é a porta de entrada para as melhores universidades públicas
brasileiras, foi adiado para 2021. E, apesar de o acesso ao ensino superior ter
crescido na primeira metade da década de 2010, sua qualidade permanece baixa e
distante da realidade da economia digital, como revelam as avaliações nacionais
e internacionais.
A tal cristofobia – Opinião | Folha de S. Paulo
Perseguição
a cristãos não é questão na América Latina, assombrada por populismo
Um
grupelho de vândalos ateou fogo a duas igrejas católicas, no domingo (18), em
Santiago do Chile, durante ato político pelo primeiro aniversário dos protestos
contra a desigualdade. Embora as manifestações naquele país ao longo do último
ano tenham sido marcadas por episódios de violência, a religião nunca fora um
alvo.
Alheio
a esse contexto, um destrambelhado presidente Jair Bolsonaro aproveitou o
incidente para voltar a falar em cristofobia, como já fizera em seu discurso
nas Nações Unidas no mês passado. Trata-se, obviamente, de mais uma bandeira
destinada a inflamar um setor caro ao bolsonarismo.
A
perseguição a grupos cristãos é uma realidade em outras partes do mundo, mas
não no Ocidente e, muito menos, na América Latina.
Em
países islâmicos, principalmente, mas também em partes da Ásia registra-se
violência contra minorias cristãs. Mais até, há um ambiente institucional
contrário ao cristianismo —e, diga-se, a qualquer outra fé que busque converter
adeptos do credo majoritário.
Nas
sociedades que seguem a lei islâmica mais ao pé da letra, a apostasia —isto é,
o abandono da fé por alguém nascido em família muçulmana— é considerada um
crime, punível com a morte.
O
mesmo não se dá, entretanto, nesta parte do mundo, onde o cristianismo se
mostra na prática soberano. Verdade que a proporção de católicos no continente
caiu ao longo das últimas décadas; entretanto as igrejas que ganharam espaço no
período também são de matriz cristã, mais especificamente evangélicas
neopentecostais.
Há
decerto alguma animosidade entre elas, que já foi até maior no passado. Hoje,
católicos e evangélicos frequentemente se aliam em torno da pauta de costumes.
Daí
não decorre, obviamente, que inexista violência religiosa no Brasil. Seus
níveis são, isso sim, relativamente baixos na comparação com os do restante do
mundo, e as religiões de matriz africana constituem as vítimas preferenciais.
Estas,
segundo os registros de um serviço de denúncia de violações de direitos
humanos, responderam por 30% das queixas de discriminação religiosa em 2018
—embora tenham peso de apenas 0,3% na demografia brasileira.
A
América Latina se vê hoje, portanto, poupada do pior em termos de violência
religiosa. Em contrapartida, foi amaldiçoada com pragas como o populismo, do
qual Bolsonaro é representante de elite.
Aprovação de Kassio não justifica novo método de indicações ao STF – Opinião | O Globo
É
grave equívoco alterar regras que criam espaço para os ministros exercerem sua
independência
A
previsível “aprovação automática” pelo Senado do nome de Kassio Marques para a
vaga do ministro Celso de Mello no Supremo Tribunal Federal (STF), temperada
pela sabatina morna a que ele foi submetido, faz crescer o interesse da
oposição em mudar as regras para as indicações à mais alta Corte do Judiciário.
Mudar as regras seria, contudo, uma péssima ideia.
Longe
das paixões ideológicas, elas trazem um mínimo de equilíbrio à experiência
brasileira na redemocratização. Entre as várias ideias em debate para mudá-las,
destaca-se a proposta de emenda constitucional (PEC) do senador Lasier Martins
(Podemos-RS), aprovada na CCJ do Senado, arquivada em 2018 e desarquivada no
ano seguinte, até que a Covid-19 paralisou o Congresso. Ela propõe diluir o poder
de indicação do Planalto num conselho integrado por presidentes dos tribunais
superiores e do Tribunal de Contas, pelo procurador-geral da República e pelo
presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Tal conselho definiria uma
lista tríplice, encaminhada ao presidente da República. O novo ministro teria
mandato de dez anos e ficaria inelegível por outros cinco depois de sair do
Supremo.
Uma
falha evidente do método é subordinar a definição dos nomes às corporações mais
influentes no meio jurídico. Outra — a principal— é o mandato fixo. É
justamente a permanência no cargo até a aposentadoria que garante aos ministros
a independência necessária para resistir à pressão dos poderosos. O ministro
não deve temer pelo futuro ao sair da Corte e, ao ocupar seu lugar no plenário,
pode decidir o voto sem se preocupar com padrinhos.
São
inúmeros os exemplos de votos dados por ministros contra os interesses políticos
e pessoais de quem os indicou, em particular na esfera penal. É o que mostram
os casos de Luiz Fux no julgamento do mensalão ou de Dias Toffoli, mais
recentemente, em favor de interesses da família Bolsonaro.
Não
tem cabimento algum estabelecer mandato para juízes. É um posto que independe
de voto popular, cujo compromisso de zelar pelo cumprimento da lei exige
proteção das ameaças. Não há, é verdade, sistema perfeito de escolha para os
ministros. Mas o essencial não é mudar as regras atuais — é cumpri-las à risca,
submetendo os indicados a sabatinas rigorosas, que os exponham a
questionamentos robustos e fundamentados.
Exatamente o contrário do que se viu ontem no Senado. Quando algum assunto relevante é abordado nas sabatinas, quase nunca é aprofundado. O inquirido nem precisa afetar preocupação. O que é preciso mudar é essa certeza de que tudo já estava resolvido antes mesmo da sabatina.
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