O
presidente está mais para lobisomem de filme de Mazzaropi do que para Duce...
O
presidente da República está em plena Revolta da Vacina. Tem ciúme da vacina.
Tem ciúme de quem a tem e mais ciúme ainda de quem a terá. O presidente se
descabela e se rebela. Homem do seu tempo, vive com ardor o ano de 1904. Quer
atirar cadeiras nos mata-mosquitos de Oswaldo Cruz, mas o sanitarista, mau
brasileiro, impatriótico, sumiu de cena antes que terminasse o ano da desgraça
e não mais se voluntaria a receber desaforos.
O
presidente, resoluto, impoluto e estulto, não desiste. Não abre mão da revolta.
Na falta do Cruz, dispara perdigotos contra o Instituto Butantan. A vacina que
se cuide. Estão pensando o quê?
A
fúria presidencial, impetuosa, pomposa e prosa, é máscula, mas dança conforme a
cançoneta: “Anda o povo acelerado/ com horror à palmatória/ por causa dessa
lambança/ da vacina obrigatória”. Na voz do cantor Mário Pinheiro, os versos
ressequidos arranham o mármore do Palácio do Planalto. Raiva da vacina. Ódio
febril e varonil.
E
o que virá depois? Inútil tentar descobrir. No Brasil, o passado é imprevisível
(abraço, Pedro Malan).
...
Autoridades
da Casa Branca visitam o palácio. A presidente do EximBank, o Banco de
Exportação e Importação dos EUA, e o ministro da Economia daqui mesmo assinam
um memorando que pode render empréstimos de até US$ 1 bilhão para o Brasil. Em
troca, apoios auriverdes à cruzada de Washington para afugentar do mercado as
tecnologias e empresas chinesas na implantação do 5G. Ao lado do presidente, o
conselheiro de segurança nacional dos Estados Unidos participa da cerimônia.
Pensa
o improvável leitor que essa solenidade foi anteontem, certo? Pois pensa
errado. Outra vez, estamos mergulhados no interminável passado imprevisível. Ao
fundo, Juca Chaves e um violãozinho se infiltram pelo ar-condicionado: “Hoje em
dia o meu Brasil/ é uma país independente/ dentre as coisas que nós temos/
vê-se até dois presidentes./ (...) Um do sul, outro do norte/ que governam
muito bem/ só que o norte é bem mais forte e governa o sul também (...)”.
Se
fôssemos um pouco mais briosos – e irônicos –, iríamos de Assis Valente, o mais
valente de todos e todas. Iríamos de Brasil Pandeiro. Celebraríamos
malandramente que “o Tio Sam anda querendo conhecer a nossa batucada”. Festejaríamos
desconfiados que “na Casa Branca já tocou a batucada de ioiô e iaiá”.
Depois
disso, a gente brasileira abriria mão da malícia. Alguém desfilaria de bananas
na cabeça – Carmem Miranda que nos acuda – e sacaria da manga do paletó, ou do
decote, a carta ufanista que faz do samba o Rei Momo da cultura pátria, o
símbolo brasileiro por excelência. Se não tiver samba, vai de rumba mesmo. Zé
Carioca de mãos dadas a Mickey Mouse, Getúlio Vargas em bombachas. Se faltar a
rumba, volte o samba-exaltação na veia, Ary Barroso na cabeça, “mulato
inzoneiro” no meio da testa, hino nacional em feitio de batucada, jamais de
oração. “Ai, essas fontes murmurantes”, coitado do jornalismo. Ai, esses
vazamentos trepidantes. Ai, esse passado alucinante.
...
A
TV Brasil exibiu com exclusividade um jogo do escrete canarinho. Consta que o
narrador deu de mandar um abraço para o presidente do sul, o que deixou em
estado de alerta máximo a vigilância democrática. Com toda a razão, embora não
seja de hoje que as emissoras estatais botam banca e montam palanque para as
“otoridade” se derramarem nos elogios recíprocos, fazendo campanha eleitoral
fora de temporada. Não, não é de hoje. O cacoete da autopromoção em microfones
públicos é antigo: é do passado.
O
presidente prometera acabar com a EBC, a estatal que controla a TV Brasil, mas
não era para acreditar. Não dava para acreditar. A facção de extrema direita
que ganhou as eleições se julga a portadora da verdade e como confunde verdade
com propaganda não pode viver sem propaganda. Ficaria sem verdade. Por isso
jamais jogará fora um equipamento como a EBC, prontinho para ser repaginado em
usina de verdades absolutas.
O
que nos salva, agora, é que a facção de extrema direita que aí está não tem
competência nem para ser fascista. Não é pra valer. Não tem compromisso com a
coerência. Na TV Brasil, o presidente está mais para lobisomem de filmes de
Mazzaropi (reprisados todos os dias) do que para Duce ou técnico de futebol. O
seu fascismo é pastiche. Anauê paranauê. O fascismo termina no colo do Centrão,
que quando o mercado favorece é direitão, mas não é bobo, não.
Um
surdo pequeno bate o compasso. O presidente chuta a causa autoritária para
escanteio e se enturma na patota do dinheiro na cueca, mais velha que a Revolta
da Vacina. Entra a cuíca, que não é cueca, para entrecortar o balanço com
agudos miúdos. Que samba bom. A voz macia de Blecaute estufa os
alto-falantes estatais. De terno claro, camisa branca sem gravata, ginga
natural, ele manda ver: “Ô, que samba bom/ ô, que coisa louca/ eu também tô aí/
tô aí, que é que há/ também tô nessa boca”.
*Jornalista, é professor da ECA-USP
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