Bolsonaro
ignora que o eleitor é mais pragmático do que ele pensa
Por
ter muita raiva da China ou de João Doria,
o rompante de Jair Bolsonaro prometendo que não vai comprar a vacina chinesa – desautorizando o
general da Saúde – ajuda a entender a razão de capitães comandarem uma
companhia, enquanto generais comandam divisões, exércitos, grupos de exércitos.
É a falta de visão de conjunto.
Bolsonaro
submeteu tudo ao projeto de reeleição, confundindo seu destino político com o
do País. É postura comum a políticos de várias colorações, mas, no caso de
Bolsonaro, a obsessão com o ganho eleitoral de curtíssimo prazo paradoxalmente
ameaça seu próprio projeto de reeleição. A popularidade desse presidente, como
a de outros, está diretamente ligada ao desempenho da economia, e esse
desempenho (até o fim de 2022, digamos) é função de uma série de decisões
políticas difíceis que ele está protelando – em nome do conforto da
popularidade no curto prazo.
Da
mesma maneira, mais atrapalha do que ajuda a economia brasileira, que depende
em grande parte do agronegócio, que depende em grande parte da China,
alinhar-se à agenda pessoal do atual presidente americano, Donald Trump.
Nem é o caso de se perguntar se esse personagem estará ainda na Casa Branca
daqui a menos de duas semanas. Mesmo que Trump produza um excepcional milagre
eleitoral e se reeleja, ao abraçá-lo da forma subserviente e bajuladora,
Bolsonaro comete um erro básico de política externa: ignorar o fato de que
países não têm amigos, só têm interesses.
Ao
que tudo indica, está perdida a aposta bastante simplória de que o “laço
pessoal” com o homem mais poderoso do mundo presidindo o país mais rico do
mundo traria ao Brasil imediatas vantagens em acesso a tecnologia, mercados,
instituições multilaterais e projeção no cenário internacional. No caso
específico da China (que hoje é quem tem o homem mais poderoso do mundo e a
maior economia), a pressão de Trump sobre o Brasil evidentemente leva em conta
apenas os interesses dos Estados Unidos, enquanto Bolsonaro sacrifica um
vantajoso ponto de partida, que é a possibilidade de jogar entre os dois no
grande confronto do século.
Aqui
entra também a questão da “diplomacia da vacina”, na qual os chineses já
demonstram notável vantagem sobre os americanos. Ao contrário dos Estados Unidos, a China está anunciando “acesso preferencial”
à vacina produzida pela Sinovac a países em desenvolvimento. Washington tem à disposição
produtos semelhantes desenvolvidos por empresas privadas de sólida reputação
mundial, mas demonstrou pouco interesse em distribuir vacinas fora dos EUA.
O
Brasil é parte dessa abrangente ofensiva chinesa, com a qual Xi Jinping pretende
ampliar ainda mais peso e influência do país, mas o que parece motivar
Bolsonaro a falar mal da vacina comandada pelo governo comunista chinês não é o
espectro (sim, esse absurdo transita em franjas do bolsonarismo) de uma
“inoculação” de ideias esquerdistas via vacina. Ele teme uma candidatura para
competir com ele “pela direita” e, seja qual for a razão, enxerga em Doria esse
personagem.
Essa
visão de túnel considerando apenas a reeleição é o que faz Bolsonaro ignorar um
provérbio... chinês. Usado, aliás, de maneira célebre por um importante
dirigente comunista, Deng Xiaoping,
iniciador das reformas que fizeram da China o que ela é hoje, e que virou lição
de pragmatismo. “Não me importa a cor do gato, contanto que pegue o rato”,
respondeu, quando indagado sobre o melhor sistema econômico.
Para
uma parcela importante do eleitorado também no Brasil, assustada com pandemia,
pouco importa a origem da vacina, contanto que ajude a resolver uma questão
literalmente de vida ou morte. Bolsonaro parece ignorar que o eleitor é mais
pragmático do que ele pensa.
*Jornalista e apresentador do jornal da CNN
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