‘Boi
bombeiro’ não pasta, mas desempenha indisfarçáveis papéis políticos e ideológicos
No
Pantanal, circulam todos os bois, inclusive os imaginários, que também cumprem
funções úteis.
Há
o boi histórico, introduzido no final do século 18, com o fim da exploração do
ouro. As famílias ricas de Mato Grosso começaram a demarcar fazendas e
iniciaram seus rebanhos com bovinos selvagens. Então, ao longo dos rios
Paraguai e Cuiabá instalaram-se charqueadas. Um século depois, a Estrada
Boiadeira conectou a região a Barretos, abrindo novos mercados à pecuária
pantaneira. O boi tradicional era deslocado em pé, nas comitivas que percorriam
centenas de quilômetros, cruzando campos, rios, corixos, lagoas e vazantes.
O
sistema ecológico do Pantanal não é natureza intocada, mas o fruto da interação
entre a pecuária extensiva e o bioma prévio. A trama de campos e matas, em molduras
de águas que se movem sazonalmente, foi consolidada pelas boiadas. O boi
tradicional cumpre a função de “limpar” a paisagem, abrindo nichos para a
diversidade de espécies pantaneiras, tal como fazem os grandes herbívoros das
savanas africanas.
Há,
também, o boi moderno, que chegou há meio século, com as rodovias e redes de
energia elétrica, e divide espaço com o boi tradicional. O advento de uma
pecuária mais intensiva gerou pressões ecológicas diversas, como a substituição
parcial das pastagens nativas por pastos de braquiárias e a derrubada de matas.
Recentemente, começou a se difundir a drenagem de campos, por meio de canais
artificiais e diques, para a expansão de pastagens. A prática destrutiva
interfere no ciclo anual das enchentes e vazantes, que funciona como
macrorregulação do sistema ecológico.
Há,
finalmente, o boi imaginário, batizado como “boi bombeiro” pela ministra Tereza
Cristina. O animal não pasta nem circula em comitivas ou caminhões, mas
desempenha indisfarçáveis papéis políticos e ideológicos.
O
fogo é parte do ambiente do Pantanal. Fogos controlados eliminam biomassa
vegetal acumulada nos campos, mantêm pastagens e propiciam mais biodiversidade.
Os incêndios avassaladores que se espalharam pela planície pantaneira, saltando
barreiras líquidas, são coisa diferente: o resultado da combinação do crime
ambiental com as mudanças climáticas.
Não
há boiada capaz de domar esse tipo de fogo. Os “bombeiros”, no caso, são regras
ambientais rigorosas, órgãos de fiscalização robustos, articulação entre
governos e ONGs sérias, forças-tarefa anti-incêndio, equipagem da população
local para combater as chamas. A ministra fala no boi imaginário para silenciar
sobre o ponteiro Ricardo Salles, que toca o berrante da devastação à frente de
uma comitiva de bárbaros.
O
“boi bombeiro” pertence a uma narrativa mais ampla. Em Corumbá, o mesmo Salles
foi saudado por um grupo de fazendeiros que gritavam “Embrapa ONG!”. Justo a
Embrapa, que estabeleceu uma parceria de quatro décadas com os pecuaristas
pantaneiros, desenvolvendo incontáveis estudos sobre as pastagens nativas e
suas formas de manejo com diferentes raças bovinas? Quando se associa à facção
de incendiários que cercava o ministro da Devastação, a ministra trai o
agronegócio sustentável de que alega ser a porta-voz.
A
polêmica do “boi bombeiro” descortinou as paisagens de dois Pantanais
simétricos, que refletem a polarização política brasileira. Um deles é o
“Pantanal primordial”, natureza pura, sem gente nem bois, que só existe nos
delírios românticos dos ecologistas de cartolina. O outro é o Pantanal da
braquiária, do dique, do rio sem mata ciliar — a extensão da pecuária intensiva
do Brasil Central almejada por um setor do agronegócio disposto a incinerar o
futuro no altar do lucro imediato.
Enchente
e vazante, campo e mata, água e fogo, gado e onça. O futuro do Pantanal
pertence aos polos complementares dessas equações. Os ecologistas de verdade,
vários deles ligados a ONGs, sabem que o boi é o escultor das paisagens da
planície inundável. Os pecuaristas que combatem incêndios aprenderam a
valorizar, tanto quanto suas boiadas, o turismo sustentável e a investigação
científica aplicada. Tereza Cristina perdeu a oportunidade de sentá-los em
torno de uma mesa comum.
*Demétrio
Magnoli é sociólogo, Maurício Copetti é documentarista pantaneiro e fundador do
Instituto Delta do Salobra
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