“Casa Grande e Senzala” é uma das mais substanciais obras iluminadoras do passado, mas obscurece ao dar a ideia de que o Brasil é uma democracia racial. Quando publicado, fazia menos de 50 anos da Lei Áurea, depois de mais de três séculos de escravidão. Mesmo assim, sugere que a relação entre senhores e escravos, especialmente com escravas, indicaria falta de racismo, apesar da exploração brutal contra eles.
No caso
das relações sexuais tratava-se de ato de violência, não gesto de tolerância.
Apesar dessa violência ter mestiçado a cor de nossa gente, ela era produto do
machismo, da supremacia branca e do poder escravocrata. Ela não quebraria o
racismo porque a fábrica do racismo não está na genética que mestiça a pele,
mas na educação que forma a mente: tolerante ou racista, conforme os
ensinamentos. Não é a cama, é a escola que constrói a democracia racial.
Apesar de seu texto genial que ilumina muito do nosso passado, “Casa Grande e Senzala” obscureceu o papel da educação na construção do Brasil que somos, porque não analisa a formação da mente escravocrata por falta de educação para os escravos e educação preconceituosa para os senhores. Ausência de educação para uns e promoção da ideia de supremacia branca para outros.
Gilberto
Freyre não é o único que obscurece ao iluminar. Sergio Buarque de Hollanda
escreveu um livro iluminador das Raízes Brasileiras, mas obscureceu nossa
realidade, mesmo sem ter a intenção, por dar origem ao estereótipo do “homem
cordial”. O homem brasileiro pode ser informal, simpático, divertido, mas se
fosse cordial não aceitaria a brutalidade que jorra por todos os poros de nossa
sociedade. Sergio Buarque de Hollanda formulou o conceito de “homem cordial”
para indicar a aceitação das maldades sem revolta política; não queria, mas
obscureceu nossa realidade, ao dar origem ao falso estereótipo de que somos
plenos de cordialidade e não de aceitação e conivência com a maldade.
Por
quase toda nossa história, o brasileiro branco praticou a maldade da
escravidão. Depois da Abolição, continuamos campeões de desigualdade, de
analfabetismo, exclusão social, violência, destruição de florestas e genocídio
contra povos indígenas; implantamos um sistema de apartação, mas acreditamos
ter índole cordial. Isto faz com que nossos intelectuais, poetas, músicos e
escritores de ficção raramente manifestem horror diante de nossa realidade.
Muitas vezes glamourizam a pobreza e a desigualdade. Castro Alves é uma das
exceções.
Poucos
de nossos intelectuais foram tão iluminadores como o grande Celso Furtado, com
diversos de seus livros, especialmente “Formação Econômica do Brasil”. Além de
iluminar o passado, inspirou o futuro com propostas para romper as amarras do
atraso e promover o desenvolvimento econômico do Brasil. Furtado avançou no
papel do progresso tecnológico, da criatividade e da cultura na indução ao
desenvolvimento, mas, ao concentrar sua interpretação na economia, teve
reduzida a importância da educação de base universal como vetor do progresso ou
causa do atraso.
Os
intérpretes da nossa formação – uma das exceções é Darcy Ribeiro - ajudaram a
alienar a consciência nacional da importância da educação como fator de
progresso. Esta é uma característica dos intérpretes brasileiros e também dos
latino-americanos. Eduardo Galeano formulou a formidável metáfora das “veias
abertas” para explicar o atraso latino-americano, devido ao saque imperialista
de nossas riquezas materiais, obscurecendo que nosso atraso decorre sobretudo
dos “neurônios tapados”, por falta de cuidados educacionais por opção de nossos
dirigentes, de direita ou de esquerda, nestes 200 anos de independência.
Com a
obra “Dependência e Desenvolvimento na América Latina”, Fernando Henrique
Cardoso deu contribuição iluminadora ao identificar a dependência econômica
como uma das causas de nosso atraso, mas reduziu a culpa de nossa elite
dirigente e não deu importância à falta de qualidade e de equidade na educação
de base. Tampouco que a falha foi nossa e não de nações estrangeiras. Stephen
Zweig, no livro “Brasil: País do futuro” iluminou nosso potencial, mas passou a
ideia de que bastava esperar. O progresso chegaria sem esforço.
8Nossos
textos básicos precisam ser conhecidos e respeitados pelo que iluminaram do
nosso passado. Mas, para que iluminem o futuro, é preciso saber o que eles
obscurecem: um país racista, violento, desigual e atrasado por não cuidar da
educação de sua população.
*Cristovam Buarque, professor emérito da Universidade de Brasília (UnB)
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