quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais

Um governo dividido contra si mesmo – Opinião | O Estado de S. Paulo

No apagar das luzes do ano legislativo, houve alvoroço entre governo e deputados na votação da PEC 319/17, que aumenta repasses da União a prefeitos via Fundo de Participação dos Municípios

No apagar das luzes do ano legislativo, houve alvoroço entre governo e deputados na votação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 319/17 que aumenta os repasses da União a prefeitos via Fundo de Participação dos Municípios (FPM). O objeto da deliberação ilustra a necessidade de reajustes no pacto federativo. Mas a maneira como ela foi conduzida mostra o quanto necessidades como essa podem ser desvirtuadas em moeda de troca no jogo político, eclipsando o interesse público. Ademais, expõe a esquizofrenia do Planalto.

O debate em si é pertinente. A União é pródiga em atribuir responsabilidades aos municípios, muitas vezes sem levar em conta as condições reais para a sua satisfação. O FPM é a principal fonte de recursos para os municípios, sobretudo os menores e mais desprovidos das receitas do comércio, indústria ou agricultura.

O problema envolve a questão dos repasses, mas também outras, como a própria existência de municípios pequenos demais para se sustentar, e que talvez devessem ser unidos a outros (como propõe a PEC do Pacto Federativo); ou as perdas de arrecadação dos entes subnacionais derivadas de isenções impostas pela União (como aconteceu com a Lei Kandir); e a necessidade de cobrar dos municípios reformas que garantam a sua viabilidade fiscal. 

A PEC aumenta em 1% os repasses para os municípios. Atualmente, 49% da arrecadação do Imposto de Renda e 22,5% do Imposto sobre Produtos Industrializados são direcionados às prefeituras via FPM. A proposta prevê um aumento para 23,5% em quatro fases: 0,25% nos dois primeiros anos; 0,5% no terceiro e 1% a partir do quarto ano. O projeto foi aprovado pelo Senado e em primeiro turno pela Câmara em 2019.

No dia 21, às vésperas do fim do ano parlamentar, a proposta foi incluída na pauta de votação pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). A equipe econômica do governo imediatamente acusou uma “pauta-bomba”. Com efeito, apesar de ser defendida como um meio de recompor receitas dos municípios em vista da pandemia, a proposta teria efeitos permanentes, gerando um impacto de R$ 43 bilhões em 12 anos à União. De resto, como mostrou o Estado, a maioria das prefeituras herdará um caixa mais cheio em 2021, seja porque o socorro federal superou em R$ 24 bilhões as perdas de receitas e os gastos com o combate à pandemia, seja porque a arrecadação já se encontra em patamares superiores aos do ano passado.

O secretário do Tesouro, Bruno Funchal, advertiu que a aprovação da PEC contribuiria para a desorganização fiscal, minando a credibilidade do País na sustentação das contas públicas. “Acaba sendo ruim para todo mundo. Isso reflete nos juros e a retomada fica prejudicada.” O líder do governo na Casa, Ricardo Barros (PP-PR), chegou a discutir com Maia.

Ocorre que foram parlamentares da própria base governista, encabeçados pelo deputado Júlio Cesar (PSD-PI), que pediram a inclusão da PEC na pauta. Como a proposta tem apoio do candidato do governo à presidência da Câmara, um dos líderes do Centrão, Arthur Lira (PP-AL), em menos de 24 horas o Planalto deu um cavalo de pau e passou a apoiar a aprovação. O próprio Ricardo Barros sacou uma justificativa mal-ajambrada, apoiando-se no bordão “Mais Brasil e Menos Brasília”: “Não é o melhor momento, mas está no DNA liberal do governo”.

Realmente, não é o melhor momento. Mas o fato de que de um dia para o outro tenha se tornado para o Planalto o momento certo, mostra o quanto as suas decisões podem solapar o interesse público em nome dos interesses do presidente e seus aliados circunstancias do Centrão. A votação foi interrompida a 7 minutos do fim do ano parlamentar. Mas a bomba está armada. Claramente, o governo não terá pruridos em deixá-la estourar, lançando estilhaços nas contas públicas federais já fragilizadas. “Qual a posição do governo, contra ou a favor?”, indagou Rodrigo Maia. Resta claro, já prenunciando o que virá nos próximos dois anos, que quem dará a resposta será o Centrão.

Presente dramático, futuro incerto – Opinião | O Estado de S. Paulo

No Brasil, pandemia foi particularmente cruel para os trabalhadores com até 24 anos

Em geral pouco favorável para os jovens em todo o mundo, no Brasil o mercado de trabalho tornou-se particularmente cruel para os trabalhadores com até 24 anos por causa da pandemia. No mundo, essa é a faixa etária mais atingida pelo desemprego. No Brasil, mesmo os jovens com alguma ocupação enfrentam dificuldades. Dos que trabalham, mais de três quartos, ou 77,4%, têm emprego de baixa qualidade.

Para muitos, o futuro pode não ser melhor. Alta rotatividade combinada com baixos salários minam as condições para que os jovens adquiram novos conhecimentos e novas habilidades que os preparem para ter desempenho e competências melhores e, consequentemente, salários mais altos e vida mais confortável do que a atual. Para o País, a perda de oportunidade de treinar os jovens para um mundo do trabalho cada vez mais exigente e seletivo pode significar atraso na corrida mundial pela competitividade e produtividade, fatores indispensáveis para o crescimento da economia.

São quase oito em dez jovens trabalhadores ocupados que estão em situação vulnerável, caracterizada por salários baixos, instabilidade no emprego, rede de proteção insuficiente e condições de trabalho inadequadas, como mostrou reportagem do Estado. São 7,7 milhões de jovens brasileiros trabalhando nessas condições. A vulnerabilidade entre esses trabalhadores é maior para os da faixa etária de 25 a 64 anos (dos quais 39,6% estão em condição vulnerável) e acima de 65 anos (27,4%).

Das quatro condições que caracterizam a vulnerabilidade do trabalho utilizadas na pesquisa da consultoria IDados na qual se baseou a reportagem do jornal, duas são particularmente ruins para os trabalhadores jovens: renda e estabilidade. Para cerca de 90% desses trabalhadores, a remuneração é inferior ao custo de seis cestas básicas (o rendimento mensal varia de R$ 398 a R$ 539) e 75% estão há menos de 36 meses no emprego.

No mundo, a renda dos mais jovens, por serem menos experientes, é menor do que a dos trabalhadores com mais idade. Os jovens têm também maior dificuldade de encontrar emprego, justamente por causa da inexperiência. “Mas, no Brasil, os porcentuais indicam uma qualidade do emprego pior por causa da maior rotatividade e da informalidade”, diz o economista responsável pela pesquisa, Bruno Ottoni.

Além da pressão sobre o salário, a baixa qualidade do emprego dos jovens tem outros impactos sobre a vida desses trabalhadores. Eles têm menor, ou nenhuma, proteção do sistema público de previdência e de assistência social, o que os torna desprotegidos em situações de desemprego ou de doença.

Dos jovens trabalhadores com até 24 anos de idade, praticamente um terço (32,7%) não tem registro em carteira de trabalho. Não tem direito a seguro-desemprego, por exemplo.

Com renda baixa, sem garantias adequadas e trabalhando em geral em condições inadequadas, boa parte desses jovens acaba por abandonar os estudos antes de concluir o curso que os habilitaria a ter um futuro melhor. Interrompe-se sua educação formal. E em poucas situações o trabalho será um local de aprendizado adequado de um ofício que lhes permitirá melhorar de vida. Perde-se a oportunidade de formação indispensável para que o trabalhador tenha futuro melhor e o País ganhe maior capacidade de crescimento.

Em certos casos, cria-se um círculo vicioso, no qual a baixa qualificação leva à rotatividade da mão de obra jovem e a rotatividade impede que esse jovem adquira novas habilidades e qualificações. A falta de vínculos formais de emprego, que implicam custos de demissão, realimenta esse processo. Pereniza-se um ciclo no qual o País mergulhou há anos, que impede o avanço da produtividade da economia nacional.

Até há pouco, a demografia ajudou o crescimento, pois a população em idade de trabalhar crescia mais do que os demais segmentos. Isso acabou em 2018. A produtividade poderia compensar essa perda, mas ela também está sob risco. O cenário futuro não tem brilho.

A transição dos prefeitos – Opinião | O Estado de S. Paulo

A transição civilizada de poder é respeito com o eleitor e zelo pelo interesse público

No regime democrático, os cargos eletivos são necessariamente temporários. Por meio do voto, o eleitor mantém ou muda o grupo político que está no poder – reelegendo o governante, elegendo o candidato da situação ou escolhendo alguém da oposição. A alternância do poder é, assim, elemento natural de toda democracia.

Dessa forma, aceitar a derrota nas eleições faz parte do jogo democrático. Por exemplo, a atitude de Donald Trump, contestando sem nenhuma prova o resultado das urnas, feriu profundamente o espírito democrático. É preciso saber ceder o cargo a quem o povo concedeu a vitória nas urnas.

Mas não basta aceitar o resultado eleitoral. O espírito democrático deve conduzir a uma transição harmoniosa entre as equipes de governo, permitindo efetiva continuidade do cuidado com a coisa pública. Possivelmente o novo ocupante do cargo terá prioridades diferentes das do seu antecessor, como também outro modo de coordenar as equipes, conduzir os projetos, levar adiante as promessas de campanha. Essas naturais diferenças não excluem a necessidade de um trabalho coordenado das duas equipes de governo, assegurando que nenhuma pendência ou urgência seja esquecida no meio do caminho. Seja na esfera federal, estadual ou municipal, um governante sempre tem muitas e grandes responsabilidades. Descuidar delas pode trazer graves prejuízos para a população.

A transição civilizada entre duas gestões não é apenas um gesto de boa educação. É respeito com o eleitor, que concedeu o poder ao eleito. E é também zelo pelo interesse público. A circunscrição administrativa não pode simplesmente parar em razão de uma troca de comando.

Além disso, a transição de poder profissionalmente conduzida é uma exigência da Constituição, que estabelece que “a administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência”. Por exemplo, o governante que não facilita a transmissão do poder ao seu sucessor desrespeita o princípio da impessoalidade. Da mesma forma, o chefe do Executivo – seja o presidente da República, o governador ou o prefeito – não cumpre os princípios constitucionais da eficiência e da moralidade se não trabalha ativamente em prol de uma transição coordenada com a equipe do novo ocupante do cargo. 

Num Estado Democrático de Direito, governar exige constante prestação de contas do exercício do poder aos órgãos de controle, à população e também a quem vai assumir depois o cargo. O exercício do poder público nunca é algo arbitrário, insuscetível de cobrança e controle. E isso envolve transmitir ao sucessor os assuntos pendentes, os possíveis cenários e desafios, os critérios que foram levados em conta nas decisões. Ou seja, a transição de poder não é mera transferência da capacidade decisória, mas comunicação efetiva das circunstâncias envolvidas, bem como, na medida do possível, dos erros cometidos e aprendizados realizados.

Uma transição eficiente do poder não se resume a boas práticas de quem deixa o cargo. O governante eleito tem também papel decisivo na empreitada. Não pode pretender, por exemplo, fazer tábula rasa da gestão anterior. Além de pouco realista, essa atitude é prejudicial ao interesse público. Sempre há pontos positivos a serem mantidos. Bons projetos não devem ser interrompidos por simples troca de partido no poder, assim como levar adiante uma obra em andamento é manifestação de respeito com o dinheiro público investido.

A próxima transição das gestões municipais é uma oportunidade para a população avaliar o modo como os prefeitos, estejam deixando ou assumindo o cargo, tratam o interesse público. O cuidado na transição é essencial para avançar em temas fundamentais como saúde, educação e saneamento. Em quatro anos, pode-se fazer muita coisa, especialmente quando não se desperdiça o que foi feito antes e quando se trabalha com uma perspectiva que vai além dos quatro anos de mandato.

Pandemia ceifou dois anos da vida dos brasileiros – Opinião | O Globo

Alta de 19% na mortalidade é o saldo macabro dos erros em série cometidos pelo governo Bolsonaro

O brasileiro já perdeu em média quase dois anos de vida em virtude da pandemia, revelam cálculos da pesquisadora Ana Amélia Camarano, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), com base nos dados do Portal da Transparência do Registro Civil coletados até 16 de dezembro. É a primeira vez, desde que existem números confiáveis sobre o tema (décadas de 1940 e 1950), que a expectativa de vida cairá no país.

As quase 200 mil vidas ceifadas pelo novo coronavírus representarão, nas contas dela, uma alta de quase um quinto (19%) sobre as mortes registradas todo ano. Sozinha, a Covid-19 terá matado pelo menos o triplo do que matam todas as causas externas, como acidentes de trânsito ou homicídios. Os números ainda são preliminares (só quando o DataSUS consolidar todas as informações sobre a mortalidade de 2020 serão definitivos). Mas já bastam para dimensionar o tamanho da tragédia que se abateu sobre nós.

Pandemias costumam representar um choque dramático na expectativa de vida. A gripe de 1918/19 tirou, num período de 12 meses, 6,8 anos de vida dos americanos, 8,3 dos franceses e 12,2 dos espanhóis. Levou pelo menos três anos até que se recuperasse o estado de saúde pública anterior.

Perto desses números, a queda de 1,9 ano na expectativa de vida do brasileiro — de 76,5 para 74,6 anos — pode parecer pequena. Mas é preciso lembrar que aquele vírus, uma cepa do H1N1, matava sobretudo os mais jovens, enquanto, no Brasil, 77% das vítimas da Covid-19 têm mais de 60 anos. Isso resulta numa perda menor em anos esperados de vida e reduz menos a expectativa da população como um todo.

Para quem tem mais de 60 anos, porém, a queda foi de 4,5 anos. Antes, um brasileiro que chegasse a essa idade poderia esperar viver em média 23,6 anos. Agora, apenas 19,1. “Como uma proporção elevada de famílias brasileira depende do que os idosos ganham para viver, também haverá perda significativa de renda”, afirma Camarano.

A principal diferença da pandemia de cem anos atrás para a atual é outra. Naquela época, poucos acreditavam que a causa da gripe fosse um vírus (entre os cientistas, o consenso era que se tratava de uma bactéria). De lá para cá, acumulou-se uma quantidade de conhecimento inacreditável, capaz de desenvolver e produzir vacinas comprovadamente eficazes contra a Covid-19 em apenas dez meses.

Com base nesse mesmo conhecimento científico, teria sido possível evitar a maior parte das quase 200 mil mortes causadas pelo novo coronavírus no Brasil. Prova disso está no exemplo de países como China, Austrália, Nova Zelândia, Japão ou Coreia do Sul. Em nenhum deles, a mortalidade sofrerá um baque nem de longe comparável ao que sofremos aqui.

As centenas de milhares de mortes no Brasil — e a consequente redução na expectativa de vida do brasileiro — são o saldo macabro dos erros em série cometidos pelo governo Bolsonaro, que continua desprezando a pandemia e a vacinação, enquanto os cadáveres continuam a se acumular.

Privatização da Cedae poderá servir de alavanca para o Rio – Opinião | O Globo

O aumento da participação do setor privado no saneamento terá reflexos positivos em várias áreas

Foram necessários anos de descaso com a incapacidade de a Cedae prestar um serviço minimamente aceitável no saneamento básico fluminense, principalmente na Região Metropolitana, para que afinal fossem vencidas as resistências políticas e corporativistas à privatização da empresa. Decreto do governador em exercício Cláudio Castro, publicado no Diário Oficial da última segunda-feira, pôs enfim em licitação os serviços de abastecimento de água, coleta e tratamento de esgoto prestados de maneira precária pela estatal. É uma oportunidade histórica para cariocas e fluminenses saírem do século XIX num segmento vital da infraestrutura básica.

Vice de Wilson Witzel, afastado sob acusações de corrupção, Castro conhece bem as resistências de grupos políticos à privatização. Assumiu com as mesmas dúvidas de Witzel sobre a viabilidade da operação, dizendo-se temeroso de o estado ter de continuar a injetar recursos na Cedae, uma vez que a estatal não deverá ser totalmente privatizada, mas continuará responsável por tratar e fornecer água ao estado e à cidade. O que será vendido à iniciativa privada são quatro blocos de distribuição de água, coleta e tratamento de esgoto, numa mescla de áreas de rendas alta e baixa, maneira encontrada pelo BNDES para tornar o negócio atraente. Castro acabou convencido de que é bom negócio para todos

No ranking de saneamento básico de 2020 do Instituto Trata Brasil, a cidade do Rio está em 52º lugar, enquanto Niterói, onde uma empresa privada distribui água, coleta e trata esgoto, está em 18º —95% do esgoto é recolhido, e tudo é tratado. Entre as 20 piores cidades do país em saneamento, também segundo o Trata Brasil, o estado do Rio tem quatro: São Gonçalo, vizinha a Niterói; Duque de Caxias, Belford Roxo e São João de Meriti, estas três próximas ao Rio. É por isso que a água do sistema Guandu, da Cedae, é de tão baixa qualidade. Apenas 1% do volume do que a Estação de Tratamento do Guandu recebe vem limpo. O resto é esgoto.

A licitação abre uma ampla fronteira de investimentos na região, capaz, pelos cálculos da Federação das Indústrias do Rio (Firjan), de despejar R$ 42,7 bilhões na economia fluminense, criando 479 mil empregos diretos e indiretos. Sempre pode haver erro nessas projeções. O certo é que a situação do saneamento básico no Rio de Janeiro é tão precária que, se os projetos forem elaborados e executados com eficiência, a privatização do sistema da Cedae será mesmo uma importante alavanca para a economia e a qualidade de vida da população, com efeitos positivos no aprendizado escolar, na produtividade no trabalho e no sistema público de saúde, menos pressionado por vítimas de doenças causadas pela água suja e pelo esgoto sem tratamento.

Ilegítima defesa – Opinião | Folha de S. Paulo

STF e, se preciso, Congresso devem evitar que reforço a júris ajude feminicidas

Está nas mãos dos 11 ministros do Supremo Tribunal Federal —entre os quais apenas 2 magistradas— deliberar, ainda que indiretamente, sobre um dos principais entraves para a punição de feminicidas no Brasil: o argumento de legítima defesa da honra.

Apesar de ultrapassado e ultrajante, esse tipo de defesa, que busca absolver o acusado apelando para a sua honra marital ou outra estultícia que o valha, convence por vezes os júris populares.

O termo se popularizou em 1979 no primeiro julgamento de Doca Street, que assassinara sua companheira, Ângela Diniz, com quatro tiros. À época, o primeiro júri absolveu o homicida —que, em 1981, foi condenado por um novo júri, após a anulação do primeiro.

Pela Constituição, ao Tribunal do Júri compete julgar os crimes dolosos contra a vida. Por se tratar dos delitos que mais chocam a comunidade, ou assim deveriam, a Carta deixa a decisão a cargo de cidadãos não togados, garantindo-lhes a “soberania dos veredictos”.

O que está em jogo no STF é se tribunais, em recurso, podem ordenar que um novo júri seja realizado após absolvições decididas de forma manifestamente contrária às provas presentes nos autos. Tal prática encontra amparo no Código de Processo Penal desde 1948.

A controvérsia atual reside na possibilidade de o júri ser anulado quando absolve mesmo reconhecendo que o crime ocorreu e que o acusado foi o autor.

Reforma de 2008 na lei instrui que o júri seja questionado primeiro se o fato criminoso ocorreu, depois se o réu é seu autor ou dele participou e, em seguida, “se o acusado deve ser absolvido”. O perigo mora nos casos em que se responde afirmativamente às três perguntas —e à última após apelos da defesa por piedade ou clemência.

No caso concreto em debate no STF, um homem foi absolvido de tentativa de homicídio pelo fato de a vítima ter sido responsável pelo assassinato de seu enteado. O que a corte decidir valerá para todos os processos futuros similares.

Recentemente, a Primeira Turma, mudando entendimento anterior, decidiu por 3 a 2 rejeitar a realização de um novo júri contra um acusado de tentar matar a esposa com golpes de faca —seus advogados alegaram a defesa da honra.

Trata-se, pois, de questão delicada a envolver o instituto problemático do Tribunal do Júri, que ao menos em tese é cláusula pétrea da Constituição. Espera-se que o Supremo e, se necessário, o Congresso saibam controlar na lei as distorções que resultam em impunidade e violência contra mulheres.

Terra arrasada – Opinião | Folha de S. Paulo

Agenda ideológica de Bolsonaro faz retroceder as políticas ambiental e fundiária

Não se pode alegar surpresa diante da sanha destruidora do governo Jair Bolsonaro em áreas naturais e rurais do país. Trata-se quase de compromisso de campanha.

Bolsonaro investe contra políticas de preservação ambiental escorado na doutrina ultrapassada de que a regulação impede o desenvolvimento econômico. Não extinguiu o Ministério do Meio Ambiente, como pretendia, mas acabou por entregá-lo a um sabotador.

Ricardo Salles, mantido no cargo, ao que parece, por pirraça do presidente, realiza a missão de implodir a pasta com a empáfia dos que não conhecem limites. De mais grave, manietou o Ibama, principal órgão de controle capaz de estancar o desmatamento —e responsável, no passado, pela aplicação de multa a Bolsonaro por pesca ilegal.

Em 2021 a agência ambiental combalida terá orçamento 4% menor. Penúria de recursos e assédio de fiscais por chefias aliadas ao ministro fizeram despencar 60%, de 2019 para 2020, os termos de embargo de propriedades que perderam vegetação natural sem autorização, repetindo retrocesso do primeiro ano do atual governo.

Política de devastação bem-sucedida: 11.088 km² de floresta amazônica desapareceram pelas mãos de grileiros, garimpeiros e madeireiros ilegais, princípio da cadeia que ao final beneficia pecuaristas e fazendeiros. Caíram ainda 7.340 km² de cerrado, que tem menos da metade da área da Amazônia e, por isso, sucumbe a ímpeto destruidor ainda mais grave.

As queimadas avançaram 12% no ano, concentrando-se no Pantanal, onde o incremento foi de 120% (de 10 mil focos, em 2019, para 22 mil). No conjunto dos seis biomas do país, os mais de 222 mil incêndios detectados por satélite ainda não alcançaram a média anual tenebrosa da década 2001-2010 (287 mil), porém seguem firme nessa direção.

Não admira que o Ministério Público Federal tenha oficiado já cinco vezes para defenestrar Salles, investidas até aqui rejeitadas pelo Judiciário. A parcela mais moderna do agronegócio, algo tardiamente, se mobiliza contra a gestão ecocida que corrói a imagem do país exportador de commodities.

A condição de pária internacional se agrava com a recusa presidencial em implementar políticas fundiárias. Não houve terra indígena identificada, declarada ou homologada; os recursos para reconhecimento e indenização de territórios quilombolas praticamente foram eliminados.

São direitos e obrigações constitucionais que Bolsonaro teima em descumprir à vista do mundo todo, começando pelos brasileiros.

Ocupação se recupera devagar a partir de agora – Opinião | Valor Econômico

O setor de serviços terá de mostrar avanços constantes para reduzir a taxa de desocupação

O desemprego está aumentando ao mesmo tempo em que a criação de vagas melhora, mostram a Pnad Contínua do trimestre encerrado em outubro e os dados do Caged de novembro - os últimos se referem apenas ao emprego formal, com carteira assinada. A recuperação de postos informais é mais intensa que a dos formais, o que traz alguma dissonância na aferição da tendência do mercado pelos índices. No entanto, ela é clara: a retomada das contratações foi forte logo depois de baterem no fundo do poço, mas será lenta daqui por diante, como demonstra o fosso considerável existente na comparação, na Pnad, entre trimestre findo em outubro de 2019 e 2020.

O desemprego, segundo a Pnad Contínua divulgada ontem, chegou a 14,3%, um número inferior aos 14,8% previstos por 22 consultorias para o Valor. Ele deverá seguir subindo até que a economia se livre da armadilha da mobilidade armada pela pandemia, isto é, quando houver vacinação que atinja uma fatia ampla da população. Nos meses agudos da pandemia, de março a junho, foram destruídos 1,6 milhão de postos de trabalho. No pico da covid-19, havia mais gente fora da força de trabalho que dentro dela. Com a volta de alguma mobilidade, a procura por uma ocupação naturalmente aumentou, sem que tivesse sido correspondida por igual ritmo de contratações.

Os números do Caged revelam que os setores mais intensamente afetados pelo distanciamento social e pela redução da mobilidade foram os que lideraram em ampliação líquida do emprego: serviços (179,2 mil) e comércio (179,.077), 86,5% do total do mês. De janeiro a novembro, o saldo da criação de postos foi de 227.025.

Há ruídos na base do Caged, que mudou com o eSocial e que pode estar superestimando o saldo de criação de emprego ao subnotificar demissões. Mas a comparação entre a Pnad Covid de novembro e a Pnad Contínua, que considera o trimestre móvel encerrado em outubro, embora não diretamente comparáveis, dá a direção do movimento.

Considerando a taxa de pessoas ocupadas da Pnad Contínua com a do Pnad Covid, há um aumento de 400 mil pessoas em novembro (de 84,3 milhões para 84,7 milhões) e expressiva redução da população fora da força de trabalho, de 77,2 milhões na Contínua para 72 milhões. A população na força de trabalho sobe de 98,4 milhões para 98,7 milhões de outubro para o mês seguinte.

A continuidade do movimento de absorção do enorme exército de desocupados e subocupados, de 46,6 milhões de pessoas (43,8% da força de trabalho) ainda é precária. Há 5,8 milhões de desalentados que serão movidos a procurar emprego, seja porque o auxílio emergencial se encerra em janeiro (último pagamento), como porque movimentações positivas no mercado de emprego abrem a perspectiva de alguma chance de recolocação.

Além disso, o fim dos programas de proteção de emprego, que incluíram 9,8 milhões de trabalhadores com a exigência de proibição de dispensa, também já teve ou terá sua validade encerrada em breve. Se a economia não mostrar um ritmo consistente de expansão, mesmo que não vigoroso, as demissões crescerão. A segunda onda de covid-19 obscurece o horizonte e, dependendo de sua magnitude - tentativas de lockdowns estão se espalhando por um Brasil onde as UTIs voltaram a esgotar sua capacidade - ela pode resultar até mesmo em um crescimento negativo no primeiro trimestre do ano. A proximidade da vacinação traz um horizonte de esperança.

As perspectivas do consumo estão diretamente ligadas à renda e ao emprego. O rendimento médio real habitual de todos os trabalhos mostrou estabilidade na média até outubro, com R$ 2.529. Na prática, esse montante, 5,8% superior ao mesmo trimestre de 2019, indica que permaneceram empregados trabalhadores de maior renda e dispensados os de menor qualificação, o que elevou a média. Os empregados da construção civil estão com seu rendimento médio 4,9% inferior, os de transporte, armazenagem e correios, 6,9% menor e o de outros serviços, 6,8% inferior em relação ao que eram antes da pandemia. As admissões nestes setores abalroados pela pandemia crescem, mas estão longe da normalidade. Como o setor de serviços é o grande absorvedor dos choques da economia, terá de mostrar avanços constantes para reduzir a taxa de desocupação, que tende ao recorde.

Nenhum comentário: