terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Pedro Cafardo - Elvis, Sabin e Emir, rogai por nós!

- Valor Econômico

Seria bom perguntar aos professores de direito se não é criminoso desestimular o uso da vacina sendo presidente da República

Lá nos anos 1970, o Brasil, sob ditadura militar, fazia um enorme esforço para vacinar as crianças contra a poliomielite. Muito antes da internet e das redes sociais, era difícil estimular os pais a levar os filhos à vacinação, embora fosse desesperador o estrago que o vírus fazia principalmente na vida das crianças. Até hoje, muitos idosos, vítimas da pólio quando crianças, enfrentam dificuldades para caminhar por causa das sequelas da doença.

Albert Sabin, o médico e cientista russo-americano, não foi o primeiro a desenvolver um imunizante contra a pólio. Mas sua vacina, pela facilidade de aplicação, em gotas, foi a que salvou o mundo dessa terrível doença conhecida como paralisia infantil - hoje, segundo a OMS, só dois países ainda têm o vírus circulando, Paquistão e Afeganistão.

Nos anos 1970, os jornais, as TVs e as rádios davam grande destaque às campanhas. Várias vezes, o próprio Sabin veio ao Brasil para estimular o comparecimento aos postos de vacinação. Um belo dia, em uma reunião de pauta na “Folha de S.Paulo”, alguém disse que Sabin era um “marqueteiro” - na época, ainda não se usava essa expressão, mas o comentário foi nesse sentido. Emir Macedo Nogueira, então um dos secretários de Redação, sempre foi um conciliador. Atuou como “algodão entre cristais”, como ele mesmo definiu, para resolver o conflito da última e talvez única greve geral dos jornalistas de São Paulo, em maio de 1979. Mas Emir ficou furioso com o comentário sobre Sabin e disse uma única frase, marcante, que acabou com a discussão: “Se o Sabin entrasse agora na Redação, eu me ajoelharia e lhe beijaria os pés”.

O exemplo de personalidades é indispensável para estimular a imunização da população. Por isso, e também porque era casado com uma brasileira, o doutor Sabin vinha ao Brasil muitas vezes na década de 1970. Só foi possível erradicar do país a pólio com esse tipo de apoio.

Nos Estados Unidos, o cantor Elvis Presley foi um grande incentivador da campanha contra a poliomielite. Nos anos 1950, a primeira vacina contra a doença, desenvolvida pelo doutor Jonas Salk, estava sendo aplicada. Era injetável e tinha baixíssimo índice de aceitação na população. Então, em 28 de outubro de 1956, Elvis, estourando com seu primeiro disco, foi ao programa de televisão “The Ed Sullivan Show” e tomou a vacina ao vivo. Imediatamente após, o índice de vacinação, que era de 0,6%, subiu para mais de 80%.

Se estivesse entre nós (ele morreu em 1982), o conciliador Emir Nogueira, com a elegância que lhe era peculiar, talvez detonasse o presidente da República por atos absurdos que podem atrapalhar a campanha de vacinação que vai começar contra o coronavírus.

Na terça-feira, 15 de dezembro, Bolsonaro esteve em São Paulo para comemorar a pintura de amarelo de uma torre na Ceagesp. Além de provocar o governador de São Paulo com um discurso de veto à privatização da central atacadista, ele disse barbaridades para desestimular a adesão à vacina contra o coronavírus. “La no meio da bula [da vacina] está escrito que a empresa não se responsabiliza por qualquer efeito colateral. Isso acende uma luz amarela. A gente começa a perguntar para o povo: você vai tomar essa vacina se as condições são essas?”

Elvis, Sabin e Emir certamente duvidariam da sanidade mental de qualquer personalidade, principalmente de um presidente da República, que levantasse dúvidas como essas quando se aproxima o início da vacinação contra um vírus que já matou mais de 180 mil pessoas no Brasil.

Mas Bolsonaro não disse só isso. Garantiu que não vai tomar a vacina: “Eu não vou tomar a vacina e ponto final. Se alguém acha que a minha vida está em risco, o problema é meu. E ponto final”.

Seria bom perguntar aos professores de direito se não é criminoso desestimular o uso da vacina sendo presidente da República, porque muita gente pode seguir o conselho, ficar doente e até morrer. Vale observar que, se ele morrer, o problema não é só dele, como disse, mas de todo o país. Afinal, por mais mal avaliado que seja, ele é presidente do Brasil e sua integridade é uma questão de Estado. Precisa ser garantida inclusive pela segurança oficial. Se o presidente ameaçar saltar de uma ponte, a segurança tem a obrigação de impedir, como aliás teria que fazer com qualquer outro cidadão.

No dia seguinte às declarações que levantaram suspeitas sobre as vacinas, Bolsonaro, sem máscara, foi à solenidade de lançamento do plano nacional de vacinação. E, para surpresa geral, mudou o tom do discurso. Disse que “se algum de nós extrapolou ou até exagerou, foi no afã de buscar solução”. Manifestou-se honrado ao receber os governadores e afirmou que existe “união para buscar solução de algo que nos aflige há meses”.

A frase soou falsa, porque foi dita depois de uma campanha negacionista sobre a doença nunca vista no país. Ele sempre criticou governadores que restringiram a circulação de pessoas, abusou da prerrogativa de andar sem máscara e promover aglomerações, chamou a doença de gripezinha e os que a temem de maricas, foi contra a redução do trabalho presencial, incentivou o uso de medicamentos sem nenhum efeito para a cura, lançou dúvidas sobre a eficácia da vacina, defendeu a sua aplicação não obrigatória etc. etc.

Além dessa e de outras atitudes deploráveis, o presidente ajudou a espalhar preconceito contra vacinas chinesas, algo que a médica e pesquisadora da Fiocruz Margareth Dalcolmo chamou, bondosamente, de “ingênuo”. Ela lembrou, no programa “Roda Viva”, que a China é o maior produtor de insumos em biotecnologia do mundo. A fábrica que produz insumos para a AstraZeneca, por exemplo, fica na China. Disse que o Brasil não produz matéria-prima para coisa nenhuma nessa área, nem para as doenças endêmicas. Todos os remédios que fabricamos no país para tratar doenças endêmicas usam matéria-prima da China. Se formos levar “na ponta da faca”, como disse Margareth, as prateleiras das nossas farmácias ficariam vazias.

Após sua longa campanha negacionista da doença, Bolsonaro disse que, “obviamente, todos nós vivemos momentos difíceis”. Nós quem, presidente? Elvis, Sabin e Emir, estejam onde estiverem, rogai por nós!

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