terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Carlos Andreazza - A semana do presidente

- O Globo

Isto é Jair Bolsonaro. O que planta descrença, difunde desconfiança, atenta contra o pacto social que fundamenta nossa rede de imunização

A semana passada foi especialmente rica em manchetes oferecidas — forjadas — pelo presidente da República. Acuado, Jair Bolsonaro disparou. É o que faz. Ameaçado, reage com novos graus de irresponsabilidade. Provoca. Agride. Trai. Mente. Conspira. Comete crimes. Promove conflitos. Dedica-se ao seu nós contra eles total — obra por meio da qual será capaz de atiçar policiais contra o inimigo jornalista. Obra por meio da qual transformou uma vacina — a chinesa, a comunista — em inimiga da liberdade.

Isto é Bolsonaro. Aquele que, sob pressão, espalha-se para lançar estímulos em direções diversas; para difundir pautas-isca, apostando em que o volume de suas descargas resulte num conjunto de reações difusas que embaralhe a hierarquia das gravidades.

São muitas as gravidades. Uma maior que as outras, porém. Óbvio que o Bolsonaro particularmente cafajeste dos últimos dias é produto do caso Abin. Evidente que seu último pacote de barbáries pretendeu também dissolver em boçalidades as novas revelações sobre o que seria a privatização da Agência Brasileira de Inteligência pela sua família. Nada se soube de mais comprometedor — de mais perigoso para Bolsonaro — numa semana em que galgou novos parâmetros em sua pregação antivacina.

O caso Abin: uma apuração jornalística, da revista “Época”, informou-nos que um órgão de Estado — aparelho de inteligência impessoal a serviço da Presidência — teria operado, com relatórios, para orientar a defesa do filho do presidente numa investigação relativa ao tempo em que Flávio Bolsonaro era deputado estadual. Escândalo a que se somou a notícia, pela revista Crusoé, de que haveria — dentro da agência — uma espécie de Abin do B trabalhando, à margem da estrutura convencional, pelos interesses de Bolsonaro e turma.

Então, para embaçar: onda e espuma. Também para camuflar a imposição do mundo real — seu governo, derrubando-lhe a palavra-veto, terá de comprar a vacina do Doria — à sua mistificação de macho-mito: onda e espuma.

Impressiona que ainda haja quem se surpreenda com Bolsonaro. Ingenuidade pela qual ele é gratíssimo; e que explora com engenho e arte. Por exemplo: em visita à Ceagesp, chocou os bocós liberais retardatários que, em dezembro de 2020, creem em que este governo privatizará alguma coisa. Nem a Ceagesp! Oh! Fomos traídos...

Em que planeta vivem? Como nenhum entre os limpinhos percebeu que o populista-estatista manipularia os manés liberais-só-na-economia para promover uma das facetas do grande estelionato eleitoral que aplica há quase dois anos? É como acreditar que de uma jaqueira pudesse cair uva. Como se um sujeito que engordou aboletado no sofá do Estado — um tipo que constituiu família, que ergueu bem-sucedida empresa familiar, dentro do Estado — pudesse se mover para diminuir a superfície que lhe enche e ampara a pança. Oh! Fomos enganados!

O presidente anunciou também que não montará o novo partido. Que não fundará o tal Aliança pelo Brasil; e que deverá se filiar a um já existente, decerto uma dessas legendas de aluguel que lhe assegurariam a escada formal para poder disputar a reeleição. Ah! Quem poderia imaginar que um notório depredador da democracia representativa — uma força destruidora que prosperou explorando a criminalização da política — não fosse investir na construção de um partido? Oh!

Também nos informou que Fabrício Queiroz pagava suas contas e que os R$ 89 mil que o amigo, amigo também de milicianos, depositou na conta da primeira-dama Michelle eram para ele — e que aquilo, aquela merreca, não poderia ser considerado propina. Ocorre que ninguém disse que a transação consistiria em pagamento de propina.

Como faz com frequência, Bolsonaro respondeu, com indignação, a uma acusação jamais feita. É mestre nisso; em criar uma falsa imputação, um falso problema, como o da vacinação obrigatória, e lhe responder com energia. Concebe um mundo paralelo — no qual estará sempre com a razão. Ninguém pode ser forçado a se vacinar — e assim brigará contra tirano inexistente. Com o que desvia a verdadeira questão: Queiroz foi denunciado como operador de um esquema de peculato havido no gabinete de Flávio Bolsonaro, tendo sido o mesmo Queiroz a fazer depósitos na conta da mulher do presidente. Essa é a fotografia no mundo real; a pergunta sendo: de onde veio o dinheiro depositado na conta de Michelle Bolsonaro?

Nenhum, porém, entre os atos graves encenados para diluir-distorcer a gravíssima investigação sobre a captura da Abin pela famiglia, teve maior gravidade do que o presidente da República declarar que não se vacinará. Foi o investimento desinformante mais violento em sua campanha — genocida – de dilapidação de nossa cultura vacinal. Isto é Jair Bolsonaro. O que planta descrença. Difunde desconfiança. Atenta contra o pacto social que fundamenta nossa rede de imunização — atentado que não apenas chama de volta o sarampo, mas também mina as bases de uma teia que costura mesmo, na prática, a própria ideia de República entre nós.

Essa malha de confiança — que alinhava a nação (como o sistema eleitoral) — é empecilho para o autocrata tanto quanto lhe será impulso ter uma Abin, uma Polícia Federal, particular.

Nenhum comentário: