terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Pedro Fernando Nery* - Frente ampla

- O Estado de S. Paulo

2021 pode registrar maior nível de desigualdade de renda vivido sob atual Constituição

Completaram 18 anos da aprovação, no Senado, do projeto de renda básica de Eduardo Suplicy. A versão aprovada foi na verdade um substitutivo de um senador do DEM – ainda PFL. É um dos casos pouco conhecidos da atuação do partido na política social, cujo resgate é interessante à medida que o partido ganha protagonismo e a natureza de sua plataforma é mais debatida. 

O DEM foi o partido que mais conquistou prefeituras nas eleições municipais que acabam de se encerrar, e na semana passada ajudou a consolidar um esforço de frente ampla reunindo diversos partidos de esquerda. Ao Estadão neste mês, o prefeito eleito Eduardo Paes – no DEM – argumentou que o espectro do partido seria bem amplo, se colocando como alguém mais à esquerda do que o seu conjunto.

No parecer do ex-senador Francelino Pereira favorável à renda básica, argumentou-se que o crescimento econômico sozinho é um caminho lento para a superação da miséria no Brasil. A pobreza seria mais sensível à desigualdade do que ao PIB. A nova transferência de renda iria ao encontro do propósito de que nenhum brasileiro tivesse vergonha de aparecer em público, parafraseando uma definição da Adam Smith sobre privação em A Riqueza das Nações.

Outra proposta do antigo PFL naqueles tempos era a de inserir na Constituição um fundo para a erradicação da pobreza, financiado por um imposto sobre grandes fortunas. De autoria de Antonio Carlos Magalhães, veio a se tornar a Emenda Constitucional nº 31, de 2000. O fundo chegou a ser utilizado, mas o imposto que seria a principal fonte de recursos nunca foi instituído. 

A proposta original previa ainda uma nova contribuição social progressiva e aumentos de impostos sobre bens e serviços de luxo: “A desigualdade na distribuição de renda no Brasil é a matriz dos problemas que assolam nossa sociedade” justificou ACM. Havia provavelmente um componente regional nas iniciativas: nessa legislatura do fundo baseado em grandes fortunas e da renda básica o PFL tinha 15 senadores apenas do Nordeste e do Norte.

Antes, em 98, no documento “Uma Política Social para o Brasil: A Proposta Liberal”, o Partido defendera que a criação de um programa de renda mínima deveria ser prioridade do governo. Naquele ano eleitoral, Eliane Cantanhêde registrou a competição entre PT e PFL pela paternidade das ideias que seriam precursores do Bolsa Escola (2001) e do Bolsa Família (2004). O PT operava nos anos 90 o Bolsa-Escola do Distrito Federal, e o PFL o Bolsa-Cidadã da Bahia (menos abrangente e com foco em crianças em áreas de sisal).

Ainda naqueles anos antes do governo Lula, conforme lembra o cientista político Murilo Medeiros, parlamentares do antigo DEM relataram a Lei Orgânica de Assistência Social (Loas, que implementa o Benefício de Prestação Continuada (BPC), para idosos e pessoas com deficiência na pobreza) e o Fundef (o antecessor do Fundeb). 

Mais recentemente, o novo Fundeb, deste ano, foi relatado por uma deputada demista. Em 2019, parlamentares do partido voltaram ao tema da renda básica, propondo benefícios universais a crianças (benefício universal infantil) ou a idosos e portadores de doenças graves (RBU) – durante a tramitação da reforma da Previdência. 

No final do ano passado, esta coluna se chamou Natal na miséria: contrastava o otimismo que havia para 2020 com os parcos ganhos econômicos para os mais pobres nos anos recentes. O ano foi virado de cabeça pra baixo: a economia em recessão pela covid e a pobreza em queda pelo auxílio emergencial. Com o seu fim em 31 de dezembro, a mesma preocupação da coluna do último Natal permanece e se acentua: o Bolsa Família só não é suficiente.

Dados compilados por Rozane Siqueira (UFPE), veiculados recentemente por Armínio Fraga, mostram tanto que o desafio brasileiro não é tão diferente do de outros países como que melhorar é possível. Diversos países europeus, incluindo até Alemanha e Finlândia, teriam uma desigualdade de renda quase brasileira não fosse a atuação do Estado tributando e distribuindo. O Brasil se distingue não só pelos níveis mais altos de desigualdade, mas por pouco mudar quando o Estado entra na jogada – se comparado ao que acontece nesses países.

O fim do auxílio e a continuada propagação do vírus podem nos levar em 2021 ao maior nível de desigualdade de renda vivido sob a atual Constituição. Uma frente ampla para aprofundar aquele pacto de 88 será bem-vinda e é esperançoso perceber que nas últimas décadas ideias para combater a desigualdade e reformar o Estado vieram da esquerda e da direita. Vale toda torcida.

* Doutor em Economia 

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