Dois
mil e vinte e um já começou, mas o ano político se inicia em 1º de fevereiro,
quando forem eleitos os presidentes da Câmara e do Senado. Ambas as Casas são
muito importantes para o equilíbrio democrático do país, realizando a dupla
tarefa de tomar as decisões últimas sobre as legislações nacionais e de gerar
contrapesos ao Executivo. Mas a disputa entre os deputados terá um efeito mais
forte no cenário político porque é na Câmara se reside a esperança tanto do
presidente Bolsonaro como daqueles que desejam um Congresso mais independente.
O resultado desse pleito definirá se haverá uma efetiva separação de Poderes ou
a cooptação de um dos sustentáculos da democracia pelo Palácio do Planalto.
Cinco
fatores explicam a maior relevância política da eleição para presidente da
Câmara. A primeira é que o Senado, mesmo que eleja alguém razoavelmente
alinhado ao Executivo, tem uma configuração que lhe garante maior
independência. Algumas razões estruturais explicam esse comportamento
senatorial. Os senadores, em geral, pretendem representar o conjunto de seus Estados,
o que lhes leva a ter maior parcimônia decisória, tornando-os menos vinculados
a uma temática ou à pressão de um único grupo de interesse.
Além disso, são menos suscetíveis ao fisiologismo do varejo que os deputados, porque normalmente têm uma posição política mais forte, advinda de sua trajetória com experiência em vários postos públicos - alguns são ex-governadores, foram ministros e até presidente da República -, o que se soma à aquisição de um mandato maior, de oito anos.
Há,
ademais, questões conjunturais que afetam a configuração política do Senado. Se
forem somados os integrantes o grupo intitulado Muda Senado com os membros dos
partidos mais de centro-esquerda, chega-se a um número de cerca de 30
senadores, ou um pouco mais, contingente capaz de evitar qualquer agenda mais
extremista do presidente Bolsonaro. Basta lembrar o caso do projeto de
regulamentação do Fundeb que foi aprovado inicialmente pela Câmara, cujo
objetivo era direcionar recursos da educação pública para igrejas, e que em
apenas um dia foi rechaçado pelos senadores. Além desse episódio, a rejeição da
indicação de um embaixador muito ligado ao ministro da Relações Exteriores,
Ernesto Araújo, o mais ideológico do governo, realçou a independência da Casa.
Em
resumo, no Senado não haverá espaço para a agenda populista de extrema-direita
do bolsonarismo-raiz, bem como há um sentimento de autoproteção institucional
mais forte. A Câmara é a arena legislativa onde o presidente Bolsonaro pode
reduzir parte do contrapeso democrático que o Congresso Nacional deve,
constitucionalmente, exercer sobre o Poder Executivo.
Desse
modo, o que explica a relevância da eleição na Câmara é ela ser o ramo
legislativo em que o Executivo tem mais capacidade de exercer seu poder sobre a
carreira política de seus componentes. Os instrumentos de cooptação são
variados: cargos, verbas, imagens junto com o presidente da República que
demonstrem prestígio político, entre outros, são moedas de troca pelo apoio ao
governo. Todos os deputados podem, em algum grau, ser seduzidos por esses
agrados, mas há um grupo que se destaca nesta relação simbiótica: os vinculados
historicamente ao chamado Centrão, nomenclatura criada ainda no período Sarney.
O
Centrão não tem um tamanho único ao longo dos mandatos presidenciais, variando
conforme a dança proposta pelo Executivo e de acordo com os humores da sociedade.
Assim, esse grupo aceita apoiar o Executivo em troca de benesses, mas só fica
fiel no relacionamento enquanto o presidente tiver popularidade suficiente para
reduzir o desgaste derivado do fisiologismo desbragado. De todo modo, seu
núcleo duro tem sido composto por cerca de 200 deputados, número insuficiente
para aprovar uma ampla agenda legislativa, mas grande o bastante para proteger
o presidente e para garantir que a agenda presidencial seja no mínimo discutida
pela Câmara. É nesse time que Bolsonaro hoje se apoia, embora no passado o
chamasse, pejorativamente, de “velha política”.
Para
Bolsonaro, ganhar a eleição na Câmara é fortalecer o Centrão e,
consequentemente, dar poder ao grupo que mais depende das benesses do Executivo
para sobreviver. Eis aí, em síntese, o segundo fator que explica a relevância
desta disputa pelo comando dos deputados: está em jogo se haverá uma Câmara
mais ou menos subserviente ao Executivo. Negar isso é como acreditar que a
Terra é plana e que as vacinas contra a Covid-19 vão transformar pessoas em
jacaré.
Muitos
podem retrucar dizendo que vários deputados que não apoiam Arthur Lira, o
candidato oficial de Bolsonaro, têm cargos no governo, tiveram a execução
acelerada de suas emendas parlamentares e votaram muitas vezes com o Executivo,
em especial em agendas econômicas mais liberais, embora o presidente tenha
comemorado mais a aprovação do novo Código Nacional de Trânsito do que qualquer
reforma econômica. Mas há uma sutileza aqui que define o aspecto central da gestão
de Rodrigo Maia na Câmara, presente agora na candidatura oposta ao
bolsonarismo: o Legislativo foi ciente de sua independência, o que gerou uma
postura aberta ao diálogo com a sociedade em sua pluralidade.
É
isto que, como terceiro motivo, está em jogo na eleição da Câmara: a sua
abertura para ouvir e levar em conta as demandas de diversos atores sociais. O
grande Ulysses Guimarães, um dos principais responsáveis pela volta do Brasil à
democracia, defendia que o Parlamento deveria ser uma caixa de ressonância da
sociedade. Foi isso que aconteceu quando a Câmara aprovou um auxílio
emergencial maior do que o proposto pelo presidente da República, ao definir
ações na saúde mais condizentes com as prescrições científicas e ao defender a
federação nas brigas de Bolsonaro com os governadores.
A
eleição de um candidato vinculado a Bolsonaro vai ter o efeito inverso. Os
cooptados pelo Executivo governarão a Câmara, de modo que, condizente com o
jogo fisiológico, estarão mais preocupados em beneficiar seus currais eleitorais
do que em ouvir, por exemplo, a comunidade científica ou instituições de defesa
dos direitos humanos. Quando esse grupo do Centrão faz acenos ao mercado ou a
outras instâncias mais gerais, trata-se de puro jogo de cena. A prova dos nove
é que só receberam o apoio do Executivo, com a consequente promessa de mais
cargos e verbas, porque se ganharem deixarão de fiscalizar as políticas
públicas, facilitando o caminho das medidas atuais, como o Plano Nacional de
Imunização, que está mais para um “Plano Nacional de Improvisação”.
Para
os que se preocupam com o futuro da economia, das empresas e do emprego no
Brasil, passar o comando da Câmara a “estadistas de província” é o primeiro
passo para que o desgoverno reinante vigore sem contrapesos até 2022.
Uma
possível vitória de Arthur Lira, na verdade, corresponde à contraposição entre
a agenda bolsonarista, que ignora aspectos técnicos das políticas públicas e
está mais preocupada em defender valores do que em produzir resultados, e uma
agenda que possa sofrer a interferência da sociedade. Nos dois últimos anos, a
propostas legislativas mais importantes foram aprovadas com pouquíssima
influência positiva do Poder Executivo, inclusive a reforma da Previdência, que
só foi piorada pela interferência do Palácio do Planalto, em nome da defesa de
interesses corporativos. Embora o Ministério da Economia tenha enviado algumas
PECs ao Congresso Nacional, a mobilização pessoal do presidente da República em
torno delas é quase zero. Alguém acredita que Arthur Lira o convencerá a
participar mais ativamente da mobilização da base governista em prol dessas
mudanças legislativas reformistas?
É
preciso deixar bem claro que o centro das preocupações legislativas de
Bolsonaro está em duas questões: a discussão de projetos vinculados à defesa de
valores do conservadorismo bolsonarista, como o “homeschooling” ou o porte de
armas, e a autoproteção do presidente e de sua família. Todo o restante da
agenda é para enganar a plateia. Isso porque Bolsonaro só pensa na eleição de
2022, por meio de uma estratégia eleitoral que evita qualquer desgaste por meio
de reformas. Suas metas são barrar qualquer tentativa de impeachment ou punição
aos filhos e estabelecer-se como o defensor do conservadorismo moral
brasileiro.
Portanto,
a importância da eleição da Câmara está, em quarto lugar, vinculada à seguinte
pergunta: os deputados vão se pautar pela agenda legislativa que se combina com
a estratégia eleitoral e de sobrevivência política dos Bolsonaro, ou vão se
guiar por um programa de atuação autônoma que pense em como garantir que o país
não afunde mais nos próximos dois anos?
Dessa
pergunta deriva um último fator que realça a importância da votação entre os
deputados e que deveria estar na cabeça de cada um deles na hora de sua
escolha: votem pensando nos 200 mil mortos pela Covid-19, naqueles milhões que
estão sem emprego, nas empresas que fecharam, na enorme desigualdade social do
país. Isso será muito mais relevante para suas reeleições e para o futuro do
Brasil do que seguir um presidente negacionista e isolado pelo mundo que lhes
dará cargos e benesses estatais em nome do silêncio.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.
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