O
Brasil chegou ontem ao número impensável e inaceitável. Duzentos mil
brasileiros perderam a vida na pandemia do Covid-19. O coronavírus mata no
mundo inteiro, mata mais nos países cujos governantes desprezam a vida humana,
a prudência e a ciência. É o caso aqui. Ontem, o presidente Bolsonaro, em
defesa do assunto que ele acha importante, o voto impresso, referiu-se “a tal da
pandemia”. A “tal”, que ele ainda subestima, enlutou lares, levou aflição a
milhões de brasileiros, lotou os hospitais, os cemitérios e nos colocou no
segundo lugar em mortes do mundo.
Ontem foi dia de uma boa notícia, pelo menos. Isso não é pouco no tempo de tanto luto. O Instituto Butantan anunciou que a vacina que desenvolve junto com a Sinovac chinesa completou a fase 3 dos testes clínicos. Segundo o governo de São Paulo, evita 100% dos casos graves e 78% dos casos leves. Ficaram faltando dados, na interpretação de alguns analistas. O mais importante deles é sobre o percentual dos que tomaram a vacina que não contraíram a doença. Não ficou claro para quem acompanhou a coletiva do governo paulista qual é, afinal, a taxa de eficácia na imunização, que é afinal o objetivo de qualquer vacina. Os testes no Brasil foram feitos com o grupo que está mais exposto: o pessoal da saúde. Isso foi realmente um teste bem mais robusto do que o feito na população em geral. O pedido de registro emergencial vai ser feito à Anvisa nesta sexta-feira e já estão no solo brasileiro mais de 10 milhões de doses. Foi o momento de alívio, num dia tenso e triste.
No
Ministério da Saúde, o general Pazuello apareceu na entrevista, coisa que não
tem feito faz tempo. Chegou agradecendo o trabalho dos jornalistas. Era falso.
Ao longo de 62 minutos ele deu um espetáculo de autoritarismo castrense. No tom
que os militares de alta patente costumam falar aos recrutas, o ministro
repreendeu e deu ordens aos repórteres. “A gente repete, repete, repete e a
notícia sai distorcida”, disse. Em seguida, proibiu a imprensa de analisar os
fatos. “Me mostrem quando foi que um brasileiro ou a população brasileira
delegou aos redatores ou a qualquer um dos senhores a interpretação dos fatos.
Nós não queremos a interpretação dos fatos dos senhores.”
Eu
interpreto que Pazuello nada sabe de comunicação e entrou em contradição com os
fatos várias vezes. Para citar uma. Ele disse que o governo federal comprará
100 milhões de doses da Coronavac, do Butantan, e essa é de fato uma excelente
notícia. Mas em seguida afirmou que isso havia sido dito várias vezes, que
inclusive foi assinado um memorando de entendimento em outubro.
O
ministro deve ter esquecido do episódio constrangedor que envolveu esse
memorando. Pazuello assinou no dia 21 de outubro, o protocolo para a compra de
46 milhões de doses. No mesmo dia o presidente Bolsonaro afirmou que não
compraria a vacina. “Já mandei cancelar”, disse Bolsonaro sobre o texto
assinado pelo ministro. E, como se não fosse humilhação suficiente, o ministro
dias depois teve que gravar um vídeo ao lado do presidente dizendo “ele manda,
eu obedeço, simples assim”.
O
Brasil não chegou à terrível marca de ontem por acaso. Foi construção diária do
governo de Jair Bolsonaro. É fruto do negacionismo, da insensibilidade, da
incapacidade de gestão. É resultado dos incentivos diários do presidente para
que a população não use qualquer medida protetiva e que faça o oposto do que os
médicos orientam. Bolsonaro demitiu dois ministros da Saúde. Henrique Mandetta
trabalhou para defender a saúde dos brasileiros, fez todos os alertas ao
governo, montou uma articulação com estados e municípios e insistiu nas medidas
de proteção. Nelson Teich ficou poucos dias no cargo e saiu defendendo o
presidente que não o deixou trabalhar. Aí veio Pazuello, que confunde país com
batalhão, convencimento com ordem unida, logística com requisições
autoritárias. E pensa que pode, numa democracia, determinar como os jornalistas
devem exercer seu ofício. Deveria saber que nem na ditadura seus antigos
superiores conseguiram calar a imprensa brasileira.
A pandemia é uma tragédia que se abateu sobre a humanidade. Enfrentá-la com um governo inepto multiplicou nossa dor. Como curar feridas de 200 mil mortes? Essa é a pergunta que ronda o Brasil.
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