Ao
se olhar para o futuro, é bom recordar as lições de 1984
Poucos
homens públicos personificaram a elite nacional como Jorge Bornhausen. Aos 83
anos, o ex-governador de Santa Catarina, ex-presidente do PDS, partido de
sustentação do regime militar, ex-ministro nos governos Sarney e Collor e
dirigente máximo do PFL até o início dos anos 2000 continua frequentando
círculos políticos e empresariais em São Paulo. Tenta, na medida de suas
forças, lançar um alerta em relação a 2022: para se articular uma alternativa a
Bolsonaro fora do espectro da esquerda, é preciso conversar sem pretensões
presidenciais colocadas.
Bornhausen
votou em Bolsonaro no segundo turno das eleições presidenciais de 2018, movido
por sua repulsa ao PT, nada mais do que isso. Afirma que não tinha ilusão
alguma. “Não podia esperar muito de alguém que fez a apologia do coronel Ustra
ao votar o impeachment de Dilma Rousseff”, afirmou, se referindo ao militar que
comandou o DOI-Codi paulista nos anos 70 e se envolveu em diversos episódios de
tortura a presos políticos.
Ele é taxativo: o presidente da República não tem equilíbrio mental, nem capacidade e nem competência para o cargo. Suas declarações recentes sobre o processo político nos Estados Unidos e seu comportamento relacionado à covid-19 reforçaram esta impressão. O saldo administrativo lhe parece desastroso.
No entanto, nada leva a crer que Bolsonaro não conclua o mandato, mesmo com a incapacidade do governo de governar. A pandemia, que ultrapassou ontem a marca dos 200 mil mortos, conspira a favor da permanência. “Política não se faz sem reunir as pessoas”, comenta Bornhausen, referindo-se tanto às ruas quanto aos gabinetes em Brasília. O agravamento da doença constrange a mobilização dos opositores do presidente, mas não a de seus aliados.
A
possível vitória do deputado Arthur Lira à presidência da Câmara poderá ter
efeito análogo à de Aldo Rebelo contra José Thomaz Nonô em 2005, ocasião em
que, com aquela escolha, ficou sepultada a possibilidade de um impeachment
contra o presidente da República de então, Luiz Inácio Lula da Silva. “A
aliança do Bolsonaro no Congresso ocorreu na prisão de seu comparsa, Fabrício
Queiroz. Bolsonaro quer evitar as possibilidades de impedimento futuro e a
eleição na Câmara vai ser um fator explicativo para a sociedade. Trata-se de
uma união entre especialistas em rachadinha”, comenta.
Neste
quadro, a maior liderança da oposição fora da esquerda, o governador de São
Paulo João Doria, não tem tido respostas na opinião pública ao seu sucesso no
combate à emergência na saúde. Doria tem 10,8 milhões de doses disponíveis ou
para envase da vacina contra a covid. Bolsonaro, de seu lado, tem zero.
Desdenha da vacina como a raposa das uvas. A impopularidade do governador
tucano, contudo, é um fato.
“O
momento exige romper a tradição personalista que marca o Brasil. A experiência
da Aliança Democrática de 1984 poderia ser aproveitada. Ali partiu-se primeiro
de um princípio, depois dos nomes”, diz, relembrando um instante em que foi
protagonista.
Em
1984, no processo de sucessão indireta do então presidente João Figueiredo, a
dissidência do PDS, à qual Bornhausen veio a se somar, tinha presidenciáveis
fortes, como o então vice-presidente Aureliano Chaves. O PMDB, maior sigla da
oposição, tinha como referência política o presidente da sigla, Ulysses
Guimarães, e como referência eleitoral o governador de São Paulo, Franco
Montoro. Os dois lados se uniram, contudo, para forjar a eleição do governador
mineiro Tancredo Neves, o nome que mais compunha.
“O
governador Doria parece aceitar a ideia de reunir agremiações em torno de um
projeto, disposto a concorrer e disposto a abrir mão. O nome, pode ser Luciano
Huck. Ou o governador gaúcho Eduardo Leite. Ou o ex-ministro da Saúde Luiz
Henrique Mandetta”, comenta Bornhausen.
Ciro
Gomes, que foi seu candidato a presidente em 2002, também entraria no jogo se assumir
compromissos em comum com este campo. Moro não, na visão de Bornhausen, por não
demonstrar apetite para a política. Ele vê um arco partidário possível para
essa reedição da Aliança Democrática que abarca PSDB, MDB, DEM, Cidadania,
Podemos, PSD e Republicanos. Os dois últimos, curiosamente, hoje estão muito
associados ao bolsonarismo.
OO
fio condutor entre Donald Trump e Jair Bolsonaro não é a conduta lunática de
seus adoradores, o fanatismo religioso de conveniência, o anticomunismo e a
construção de narrativas mentirosas nas redes sociais, ao sabor dos
ressentimentos provocados pelas transformações sociais.
O
que une os dois líderes, nesse momento, é o populismo, em um dos traços mais
marcantes já catalogados por esse modo de se fazer política: o anti-institucionalismo.
Trata-se do apelo às massas para que sejam rompidos todos os mecanismos formais
de mediação social. Nem Congresso, nem o Judiciário, nem partidos, nem
entidades de classe, imprensa, nem absolutamente nada resta em pé no caminho.
De
um lado estará o povo, movido pelo seu único intérprete, e também o
impulsionando: o formidável demagogo, que incorpora em si o sentimento legítimo
da nação, que é o que emana das ruas. Do outro lado, estão os inimigos. Não são
adversários, são inimigos. São as instituições, o establishment, os que não
carregam a pátria no coração, os que não pertencem, os que não são.
Parece
fascismo? Parece. Mas é populismo. Ao arengar as massas, antes da invasão do
Capitólio, Trump se desnudou de maneira didática. Não é razoável pensar que ele
tencionasse impedir a posse de Biden com o desvario de anteontem. A mensagem é
para 2024. Será acima das instituições que tentará se manter no jogo. “Trump se
enfraquece dentro do Partido Republicano, mas não como movimento. Neste sentido,
pode ser que se reorganize fora do partido”, comentou Carlos Poggio, professor
de relações internacionais da PUC-SP.
Desde os quartéis, Bolsonaro escarneceu da autoridade, jogou para a plateia e estabeleceu divisões irreconciliáveis. Poggio frisa que Bolsonaro foi o único líder a bancar a narrativa de Trump de que houve fraude na eleição dos EUA. “Não há outro sentido nessa postura que não seja o de fortalecer uma posição doméstica”, disse. Bolsonaro há tempos desacredita o processo democrático, inclusive a própria eleição que venceu. A literatura sugere que estrondo e fúria não garantem permanência de populistas, como o exemplo de Trump sugere. Mas a institucionalidade é mais fluida no Brasil. Cabe o sinal de alerta.
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