sexta-feira, 8 de janeiro de 2021

Yascha Mounk* - Conflito entre democracia e populismo só começou

- Folha de S. Paulo

Muitos outros populistas autoritários nutrem esperança de implementar mesmo roteiro de Trump

Como observou Aristóteles em “A Poética”, o final de um drama deve ser surpreendente, mas inevitável. Se isso é verdade, então os quatro anos de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos acabam de chegar a uma conclusão apropriada.

O Capitólio é o edifício mais imponente de Washington. Quando turistas chegam à cidade pela primeira vez, muitas vezes o confundem com a Casa Branca, por ele ser tão grande.

E, embora a democracia americana tenha passado por muitos dias turbulentos, deputados e senadores puderam realizar seu trabalho em segurança em seus salões majestosos por mais de dois séculos.

A última vez em que os inimigos da democracia conseguiram invadir o perímetro do Capitólio foi em 1814, quando tropas britânicas marcharam nas ruas de Washington. (Houve também uma vez, em 1954, quando terroristas lutando pela independência de Porto Rico entraram com armas na Câmara dos Representantes e começaram a disparar nos congressistas a partir da galeria dos visitantes.)

Isso ajuda a explicar por que os acontecimentos da quarta-feira (6) serão recordados por décadas, diferentemente de tantos incidentes sórdidos dos últimos quatro anos. Pela primeira vez na memória das pessoas, uma insurreição popular interrompeu as deliberações dos representantes livremente eleitos da população americana. E a pessoa responsável por reunir aquela turba e mobilizá-la para agir não foi um terrorista fanático nem o líder de alguma seita religiosa esdrúxula –foi o presidente dos Estados Unidos.

Quando Trump perdeu por 7 milhões de votos sua tentativa de ser reeleito, ele começou a disseminar teorias conspiratórias mais e mais desesperadas sobre suposta fraude eleitoral. Numa quebra chocante sem precedente, ele ainda se nega a admitir que Joe Biden o derrotou numa eleição livre e justa.

Na quarta, esse espetáculo sórdido finalmente estava prestes a chegar ao fim. O Congresso se preparava para certificar os resultados da eleição. Nada se colocaria no caminho de Biden para se tornar o 46º presidente dos EUA.

Para conferir um verniz superficial de apoio amplo a seu esforço de último recurso para subverter o resultado de uma eleição livre, Trump incitou seus seguidores a atacar Washington. Discursando para eles na manhã da quarta, ele disse: “Vamos marchar até o Capitólio. [...] Nunca vamos retomar nosso país com fraqueza. Vocês precisam demonstrar força.”

Encorajados por essas palavras incendiárias –e pela fraqueza lamentável da polícia local—, alguns manifestantes passaram por cima das barreiras frágeis que deveriam proteger a câmara central da democracia americana.

Deputados e senadores foram forçados a interromper seus trabalhos importantes e a fugir para um local de segurança. Centenas de seguidores de Trump entraram no edifício e começaram a depredar o lugar.

Na Câmara dos Representantes, guardas com armas em punho tentaram desesperadamente impedir uma enxurrada crescente de manifestantes de penetrar no recinto.

A algumas centenas de metros dali, as últimas barreiras já tinham sido derrubadas. Um homem sem camisa, usando um chapéu gigantesco de peles com chifres artificiais, subiu no pódio do Senado, de frente para a câmara, flexionando os músculos em um gesto de triunfo.

No final, a insurreição mais surreal desde a que foi vista em “Bananas”, de Woody Allen, não chegou a ser grande coisa. A polícia finalmente conseguiu assumir o controle do Capitólio.

O constrangimento enorme provocado pelo dia parece ter envergonhado alguns dos reféns de longa data de Trump, incluindo o vice-presidente Mike Pence, e os levado a se distanciar de seu sequestrador. Tanto a Câmara quanto o Senado votaram, com maiorias inequívocas, para certificar o resultado da eleição.

Mesmo após quatro anos durante os quais Trump atacou as instituições democráticas da América de mil maneiras, as imagens desta insurreição têm o poder de chocar e estarrecer.

Ao longo do dia recebi uma dúzia de mensagens de amigos de todo o mundo que não conseguiam acreditar nas imagens de Washington que estavam chegando às suas telas. No entanto, para os estudiosos do populismo autoritário esses acontecimentos também parecem ter sido inevitáveis.

Desde que Trump ingressou na política, ele sempre deixou claro que ele e mais ninguém representa verdadeiramente o povo americano. É essa convicção que a cada oportunidade o colocou em conflito com qualquer instituição democrática que tenha limitado seu exercício do poder, movido por seus próprios caprichos. Na visão de Trump, nem juízes nem representantes eleitos tinham o direito de subverter a vontade do povo americano, conforme interpretada por sua própria mente narcisista.

Essa convicção fundamental também ajuda a explicar por que Trump se mostrou incapaz de aceitar que o resultado da eleição foi legítimo.

Como o republicano considera que ele próprio é a verdadeira voz do povo, é impossível que qualquer eleição que pareça demonstrar o oposto seja livre ou justa.

Para quem acredita em sua premissa populista, teorias conspiratórias obscuras sobre votos roubados são a explicação mais lógica para um fato que de outro modo seria impossível.

Tudo isso é repulsivo e constrangedor. Mas, em meio a tanta coisa repugnante, não devemos esquecer que nos últimos quatro anos a democracia americana passou em uma prova difícil na qual muitos outros países foram reprovados, tragicamente.

A imprensa americana noticiou os ataques de Trump contra instituições democráticas. Organizações da sociedade civil defenderam essas instituições de maneiras imaginativas. Dezenas de milhões de americanos votaram para afastar Trump do poder.

Autoridades eleitorais locais resistiram com coragem notável a esforços intensivos de intimidação. E, sim, um bom número de deputados e senadores republicanos acabaram apoiando a certificação da eleição.

As instituições americanas estão gravemente feridas. Mesmo no caso mais otimista, levarão décadas para recuperar seu prestígio anterior e a confiança de que gozavam. As imagens de quarta-feira vão nos assombrar por muitos anos ainda.

Mas em inúmeros outros países, da Europa à Ásia e da África à América do Sul, populistas autoritários conseguiram assumir controle pleno do sistema político. E muitos outros aguardam nos bastidores, na esperança de implementar o mesmo roteiro.

A vitória dos populistas não é inevitável. Porém, depois de testemunhar os danos assustadores que um astro narcisista de reality show conseguiu infligir à democracia mais antiga do mundo, ninguém deve se surpreender se eles conseguirem fazê-lo em muitos outros países também.

O conflito monumental entre democracia e populismo apenas começou.

*O cientista social Yascha Mounk é professor associado na Universidade Johns Hopkins e autor de "O Povo contra a Democracia".

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