EDITORIAIS
Política para armas de Bolsonaro dá munição
a bandidos
O Globo
Desde que assumiu, o presidente Jair Bolsonaro vem flexibilizando as regras para compra de armas e munições, por meio de ao menos 30 atos normativos. Pode-se alegar que tais medidas as preservam nas mãos das forças de segurança, civis e militares, ou então de “cidadãos de bem”, identificados por registros nos órgãos de controle. Em tese, esse armamento não teria relação com a violência que fustiga as cidades brasileiras. A lógica implícita nas medidas de Bolsonaro é apenas tentar armar a população para que se defenda dos bandidos.
Os fatos desmentem, porém, essa visão
simplista da violência. Um levantamento do GLOBO, em parceria com o Instituto Sou
da Paz, mostrou que a munição comprada pelas forças de segurança estaduais e
federais foi usada em pelo menos 23 ações criminosas — entre elas, sete
chacinas —, que resultaram na morte de 83 pessoas em oito estados entre 2010 e
2020.
A pesquisa verificou que 145 lotes de
munição comprados por polícias ou pelas Forças Armadas foram parar nas
trincheiras do crime organizado. O estudo se baseou em informações judiciais
sobre cartuchos encontrados em cenas de crimes ou apreendidos com bandidos. É
um mistério a resposta à pergunta óbvia: como munições legais foram parar em
mãos de criminosos? Na maior parte dos casos, os desvios não foram
esclarecidos, portanto não houve punição. Grupos de extermínio e milícias
atuaram em mais da metade (15) das 23 ações investigadas.
O lote encontrado com maior frequência foi o UZZ18, comprado pela Policia Federal em 2006. Cartuchos dessa leva foram usados no assassinato da vereadora Marielle Franco e de seu motorista, Anderson Gomes, em 2018, um dos crimes de maior repercussão no país nos últimos anos. A polícia identificou os executores, que estão presos, mas até hoje nada se sabe sobre os mentores ou o motivo do crime. Munição desse carregamento foi usada também em duas chacinas com participação de PMs na Região Metropolitana de São Paulo em 2012 e 2015; na guerra entre traficantes de São Gonçalo e num assalto a uma agência dos Correios em Serra Branca, na Paraíba.
Uma explicação para munição desse lote se
espalhar pelos quatro cantos do país é seu tamanho colossal: ele é composto por
2,4 milhões de projéteis. Por óbvio, haver mais balas com identificação
idêntica dificulta o rastreamento (o lote padrão tem 10 mil unidades). É
sintomático que uma das três portarias revogadas por Bolsonaro em abril do ano
passado, cujo objetivo era facilitar o rastreamento de munição, determinava
justamente que um código novo fosse usado a cada 10 mil unidades.
A importância dessa medida fica evidente
noutro crime de repercussão nacional, em que foi usada munição comprada pelo
Estado: o assassinato da juíza Patrícia Accioly, em 2011. A marcação no lote
ajudou a polícia a chegar aos criminosos, policiais militares do Batalhão de
São Gonçalo, que ela investigava sob a suspeita de integrarem um grupo de
extermínio.
Como o controle de armas e munições é
falho, desvios são frequentes. Estão aí crimes como o assassinato de Marielle
para comprovar. Facilitar o acesso a armas e munições, ampliando as quantidades
que cidadãos e agentes de segurança podem comprar, só aumenta a chance de esse
arsenal ir parar nas mãos de criminosos. Afrouxar as normas, como tem feito
Bolsonaro, equivale a dar munição aos bandidos.
Situação de Pazuello fica ainda mais frágil
com avanço da CPI
O Globo
A situação do ex-ministro da Saúde Eduardo
Pazuello se complicou ainda mais depois do depoimento da secretária de Gestão
do Trabalho e da Educação do Ministério da Saúde, a médica Mayra Pinheiro, na
CPI da Covid. Apelidada “Capitã Cloroquina”, ela disse que Pazuello soube da
escassez de oxigênio em Manaus em 8 de janeiro, e não no dia 10, como o
ex-ministro dissera à comissão.
A falta de oxigênio no Amazonas é questão
central para a CPI, além de ser objeto de um inquérito que investiga
especificamente a tragédia de Manaus. Antes de prestar depoimento durante dois
dias, Pazuello mudou diversas vezes a data em que afirma ter tomado
conhecimento de que os estoques eram críticos. Ao depor, ele negou que tenha
sido informado no dia 8 de janeiro. Cada dia de atraso significou mais mortes.
Não foi a única vez em que Pazuello ficou
exposto. Ao falar sobre o aplicativo TrateCov, lançado pelo governo para
incentivar o descabido “tratamento precoce”, Mayra revelou que não houve
invasão do sistema, como afirmara Pazuello, mas tão somente “uma extração
indevida de dados”, que não afetou o funcionamento. Ela disse que o TrateCov
foi tirado do ar depois do episódio para que o caso fosse investigado, mas não
soube dizer por que não foi retomado. Confirmou também que o ministério
recomendou o uso de cloroquina e hidroxicloroquina, mais uma vez contrariando
Pazuello.
Mesmo tendo exposto as contradições dele, o
depoimento de Mayra foi uma aberração. Ela exaltou o uso de drogas ineficazes,
como a própria cloroquina e a ivermectina, bizarrice defendida pelo presidente
Jair Bolsonaro sem amparo na Ciência. Disse não ver problemas na prescrição de
cloroquina a crianças e gestantes e desdenhou precauções. Afirmou que crianças
deveriam ir à escola não só porque são menos suscetíveis ao vírus, mas também
para contribuir para a “imunidade de rebanho”.
O depoimento propiciou outro embate
ridículo entre adeptos e críticos da cloroquina. É absurdo que uma comissão
instalada para investigar ações e omissões do governo na pandemia abra espaço
para tal discussão. Nossos senadores têm a obrigação de entender que não há debate
a fazer sobre o tema. Não se trata de questão aberta a opiniões. Do ponto de
vista da medicina, a cloroquina é questão encerrada há ao menos um ano. Os 35
estudos existentes atestam que não só é ineficaz contra Covid-19, mas pode
causar efeitos adversos graves, como arritmia cardíaca. O resto é
curandeirismo.
Que o Ministério da Saúde tenha num cargo
de relevância alguém que defenda drogas comprovadamente ineficazes equivale a
convidar um terraplanista a projetar o lançamento de um foguete à Lua. Mayra
tem até direito de emitir sua opinião, mas transformá-la em política pública é
uma barbaridade. Em vez de cuidar do treinamento de profissionais, sua
atribuição na Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação, ela priorizou a
cloroquina. Não deixa de ser um símbolo de um governo obscurantista, que
conduziu o país a mais de 450 mil mortes.
Os vândalos da democracia
O Estado de S. Paulo
O general intendente Eduardo Pazuello,
ex-ministro da Saúde, participou de um comício do presidente Jair Bolsonaro no Rio
de Janeiro no dia 23 passado. Esse gesto do general contraria frontalmente os
regulamentos do Exército, que proíbem a participação de militares da ativa em
eventos de caráter político, como obviamente era o caso da manifestação
bolsonarista.
Que ninguém imagine que a imprudência do
intendente Pazuello tenha sido um ato isolado ou apenas tresloucado. A
gravidade do caso está precisamente no contexto: o militar infringiu normas das
Forças Armadas numa manifestação em que o presidente Bolsonaro mais uma vez se
referiu a essas Forças como “meu Exército”.
Ou seja, o intendente Pazuello, no instante
em que subiu no palanque bolsonarista, deixou de servir o Exército para servir
Bolsonaro – que jocosamente se referiu ao general como “nosso gordinho”, sendo
que o intendente suportou prazenteiramente a humilhação. Assim, Bolsonaro
explorou a oportunidade para reafirmar sua pretensão de submeter as Forças
Armadas a seu projeto de poder sem limites.
Mau militar quando esteve na ativa,
Bolsonaro manteve sua atitude de desrespeito pelas Forças Armadas mesmo na
condição de presidente da República. Esse deboche chegou ao ápice em março
passado, quando o presidente afastou os comandantes do Exército, da Marinha e
da Aeronáutica depois que estes rejeitaram a demissão do general Fernando
Azevedo do Ministério da Defesa. O ministro Azevedo havia resistido às pressões
de Bolsonaro para obrigar as Forças Armadas a lhe dar respaldo político e a
corroborar suas investidas contra as medidas de isolamento social determinadas
por governadores e prefeitos no combate à pandemia de covid-19.
Tendo como modelo a Venezuela chavista,
Bolsonaro está empenhado em envolver os militares em suas aventuras golpistas.
Enquanto neutraliza o Congresso por meio do contubérnio com o Centrão e procura
inocular o vírus do bolsonarismo no Judiciário e nos órgãos de controle, o
presidente busca atrair para sua causa deletéria oficiais de baixa patente e
policiais militares, numa clara tentativa de minar o poder dos comandantes e
criar clima de ruptura de hierarquia, de ordem e de disciplina, pilares das
Forças Armadas e das corporações policiais. Na última vez que um presidente da
República desafiou esses pilares, em 1964, o resultado foi a instauração de um
regime politicamente desastroso, a começar para aquele que incitou a
insubordinação militar.
A presença do irrelevante general
intendente Pazuello naquele palanque, portanto, tinha o propósito exclusivo de
simbolizar a submissão de um militar de alta patente a esse empreendimento
autoritário. Pazuello deixou de ser um general do Exército brasileiro para ser
um recruta do exército de Bolsonaro.
Não se pode descartar que a presepada de
Pazuello no Rio de Janeiro faça parte do lançamento informal de uma eventual
candidatura política do general. Afinal, o bolsonarismo fez do escárnio às
instituições democráticas seu principal ativo eleitoral – e o que Pazuello fez,
ao desafiar as normas do Exército e ao surgir sem máscara numa aglomeração em
meio a uma pandemia que já matou mais de 450 mil brasileiros, foi apresentar-se
como um autêntico bolsonarista, o que pode lhe render alguns votos da gente
ressentida com a democracia.
Os laços do bolsonarismo se forjam no
desrespeito pela lei, justamente porque é a lei que iguala a todos. O exemplo é
dado pelo próprio Bolsonaro, que cotidianamente desafia normas legais
(sanitárias, militares, eleitorais e de trânsito, entre outras) não por
desconhecimento ou ignorância, mas por convicção antidemocrática.
Pazuello é um peão nesse perigoso jogo de
Bolsonaro, assim como são peões os camisas pardas com cara de mau que se
aglomeram para adular seu “mito”, intimidar jornalistas e evocar um golpe
militar que enfim dê a ele o poder absoluto que tanto procura.
Pazuello deve ser punido não somente porque
desmoralizou sua farda, mas para que afinal o País demonstre que o bolsonarismo
não pode tudo.
O Estado de S. Paulo
O urgente desafio de encontrar um candidato a presidente da República competente, responsável e com viabilidade eleitoral é tarefa que compete primariamente aos partidos e às lideranças políticas. Trata-se de uma decorrência da própria democracia representativa, com suas esferas de mediação.
Todo o poder emana do povo, mas ele é
mediado por instituições intermediárias; de forma muito especial, pelos
partidos. Por isso, a Constituição de 1988 estabelece que a filiação partidária
é uma das condições de elegibilidade. Na democracia representativa, as legendas
são essenciais para a mediação do poder político com a população.
Ter presente esse marco político-jurídico é
muito importante para distinguir responsabilidades e exigir as devidas ações
dos partidos e de suas lideranças. O País não pode ficar refém de uma
disjuntiva, absolutamente asfixiante, entre Luiz Inácio Lula da Silva e Jair
Bolsonaro. É preciso que haja de fato um pluralismo político – para que o
eleitor possa, ao dar o seu voto, escolher um candidato honesto, competente e
viável politicamente.
O reconhecimento do papel fundamental dos
partidos em relação à terceira via não significa, no entanto, que a população
deva ficar alheia ao tema, como se a sua função nessa matéria se limitasse ao
voto no dia das eleições. Todos os cidadãos e, de forma especial, a chamada
sociedade civil organizada e as organizações da sociedade – com suas entidades
civis, associações de classe e movimentos – terão papel fundamental na promoção
de um verdadeiro pluralismo político nas próximas eleições presidenciais.
Reitera-se o que já se disse, neste espaço,
noutras ocasiões. Numa República, todos são iguais perante a lei, e não cabe
atribuir prerrogativas diferenciadas a alguns. É forçoso reconhecer, no
entanto, que quem pode fazer mais – seja por sua condição social, sua situação
econômica, seu prestígio profissional, sua capacidade de mobilização ou outra
característica pessoal – tem maior responsabilidade sobre os rumos da
coletividade.
As elites, no sentido sociológico do termo,
têm papel decisivo na construção do futuro. Nas circunstâncias atuais, trata-se
de definir se o País estará submisso ao retrocesso – seja na forma do
lulopetismo ou na do bolsonarismo – ou se abrirá a possibilidade de outro
horizonte, comprometido com a realidade, com a democracia e com a cidadania.
Não é pouca coisa o que está em jogo quando se fala em ter, nas eleições de
2022, um candidato a presidente da República competente, honesto e viável
politicamente.
Com suas ações, as organizações sociais e
suas lideranças podem contribuir para que o País tenha um candidato da terceira
via responsável e viável. Em primeiro lugar, não pactuando com as tentativas de
relativizar defeitos e carências do lulopetismo e do bolsonarismo.
Observa-se o empenho de lulistas e
bolsonaristas para difundir uma memória seletiva, desvirtuando fatos e
decisões, numa manobra para esconder a verdadeira natureza das propostas de
Luiz Inácio Lula da Silva e de Jair Bolsonaro. Por exemplo, o PT é apresentado
como solução para a atual polarização, quando foi ele que promoveu, ao longo de
anos, o esgarçamento do tecido social com o seu “nós” contra “eles”. Cabe às
lideranças sociais rejeitar essa manipulação da história recente do País.
Outra dimensão do papel da sociedade
organizada é dar voz às aspirações da população. Não apenas mostrar indignação
com o que está errado – por exemplo, a forma como o governo Bolsonaro lidou e
lida com a pandemia de covid-19 –, mas expressar o que se deseja, por exemplo,
para a economia, a educação e a saúde. É dever das elites exigir um patamar
alto de competência e moralidade na condução da coisa pública.
Os partidos não são entidades etéreas,
imunes ao que ocorre no mundo real. A pressão social tem efeito direto sobre as
lideranças partidárias. Nesse sentido, é muito oportuno que as legendas
percebam, por parte da sociedade, a profunda aspiração por uma política que vá
além do lulopetismo e do bolsonarismo.
O Estado de S. Paulo
O governo federal arrecadou R$ 156,82 bilhões de impostos e contribuições em abril, um recorde para o mês na série iniciada em 1995. Esse desempenho é mais um sinal de reanimação dos negócios, apesar do recuo da atividade em março, apontado pelo Banco Central (BC) e pela Fundação Getulio Vargas (FGV). A receita obtida no período de janeiro a abril somou R$ 608,55 bilhões em valores atualizados (R$ 602,72 bilhões a preços correntes) e também foi recorde. Mas esse desempenho é em parte explicável pela inflação no atacado e pela alta do dólar.
A arrecadação de abril foi 45,22% maior,
descontada a inflação, que a de um ano antes, quando os primeiros efeitos da
crise da pandemia apareceram nas contas públicas. Mesmo com a exclusão de
fatores atípicos, como diferimentos de impostos, o valor recolhido no mês
passado ainda apresentaria um ganho real de 16,18% em relação ao de abril de
2020, observou o chefe do Centro de Estudos Tributários e Aduaneiros da Receita
Federal, Claudemir Malaquias. Ele se referiu, nesse comentário, à parcela
administrada diretamente pela Receita.
O total arrecadado de janeiro a abril,
13,62% maior que o de um ano antes, em termos reais, é explicável em primeiro
lugar pelo aumento da atividade industrial, das vendas de bens e do valor em
dólar das importações. Nos meses de dezembro a março deste ano a indústria
produziu 6,43% mais que entre dezembro de 2019 e março de 2020. A mesma
comparação mostra expansão de 1,84% nas vendas de bens e de 5,70% no valor das
importações e recuo de 1,48% nas vendas de serviços. Este setor, o último a
entrar em recuperação no ano passado, continua defasado. Mas a melhora da
arrecadação é atribuível também a outros fatores.
A instabilidade cambial também tem
favorecido a arrecadação. A comparação dos períodos de quatro meses até março
de 2020 e março de 2021 mostrou aumento de 5,70% no valor em dólar das
importações. Mas esse valor, convertido em reais, foi inflado pela alta de
17,70% da taxa média de câmbio. Além disso, segundo relatório da Receita, houve
elevação de 6,50% na alíquota média efetiva do Imposto de Importação e de
19,64% na alíquota média efetiva do IPI-Vinculado.
Também a inflação no atacado engordou a
receita tributária, como observou o pesquisador Matheus Rosa, do Instituto
Brasileiro de Economia (Ibre) da FGV. Para suas comparações “em termos reais”,
os técnicos da Receita usam o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo
(IPCA), com variação acumulada de 6,76% nos 12 meses até abril. Para uma
análise mais precisa, no entanto, seria necessário levar em conta a alta dos
preços por atacado. Esses preços aumentaram 46,10% nos 12 meses até abril,
impactando os custos empresariais e a base da tributação.
Apesar do tropeço em março, quando a
produção industrial e as vendas no varejo foram menores que em fevereiro, a
retomada econômica deve continuar até o fim do ano e isso favorecerá a
arrecadação de impostos e contribuições. A maior parte das novas estimativas de
crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) tem ficado na faixa de 3,4% a 4%. As
mais otimistas têm superado ligeiramente esse intervalo. Se forem confirmadas
pelos fatos, a economia brasileira sairá do buraco onde afundou no ano passado,
quando o PIB diminuiu 4,1%, mas essa aposta ainda é arriscada.
De toda forma, pode-se esperar nos próximos meses um aumento da arrecadação tributária. Esse aumento deve ser insuficiente – se as contas públicas forem geridas com austeridade – para o governo conceder maiores estímulos à atividade econômica, mas facilitará a travessia de um ano ainda difícil. Na melhor hipótese, esse ganho de arrecadação permitirá algum controle da dívida pública. As incertezas sobre a evolução dessa dívida têm afetado as decisões dos investidores e o funcionamento do setor financeiro, pressionando os juros, o câmbio e alimentando a inflação. O governo ainda terá trabalho para transmitir tranquilidade ao mercado. Isso dependerá em grande parte das ações e palavras do presidente da República.
Além dos holofotes
Folha de S. Paulo
CPI da Covid precisará de mais preparo e
planejamento para avançar na apuração
Na semana passada, a Folha publicou
uma cronologia das ofertas de vacinas da Pfizer ao governo brasileiro. Tivessem
os senadores da CPI da Covid inquirido o general Eduardo Pazuello com o rigor
baseado na sequência de fatos, o depoimento
seria mais esclarecedor —ou, ao menos, as evasivas do depoente seriam
logo contestadas.
Essa é apenas uma evidência anedótica do
despreparo da maioria dos parlamentares que participam da comissão, muitos
deles mais empenhados em aparecer para as câmeras e as redes sociais.
Renan Calheiros (MDB-AL), relator da CPI,
deu outro indício da displicência do colegiado ao afirmar que contrataria um
serviço externo a fim de averiguar as mentiras de Pazuello. Ora, boa parte do
trabalho prévio da investigação deve ser reunir um elenco de fatos bem
estudados e documentados.
Ademais, o Congresso dispõe de um grande
corpo de consultores legislativos capazes e bem pagos. Os senadores dispõem de
assessorias numerosas e custosas. Não se vê equipe técnica da CPI dedicada não
apenas a aspectos jurídicos mas também sanitários.
Com poucas exceções, os inquiridores
parecem desconhecer documentos públicos sobre a atuação do governo. Há, por
exemplo, um relatório do Tribunal de Contas da União (TCU) sobre omissões do
Ministério da Saúde na epidemia que renderia horas de perguntas.
A CPI também pode ser mais do que uma
apuração do passado recente. Cabe interrogar os integrantes do governo,
inclusive, sobre programas de controle da epidemia ainda inexistentes.
O que foi feito para evitar a importação e
a circulação do vírus e suas variantes pelo país? Por que não há uma rede
nacional de laboratórios rastreando e testando novas cepas? Por que não houve
um trabalho de testagem sistemática de possíveis infectados e rastreamento de
seus contatos?
Um questionário rigoroso estabeleceria as
responsabilidades e lançaria uma demanda imediata de ação do governo Jair
Bolsonaro, que obviamente sabota ou proíbe todas essas iniciativas.
Já está superada a etapa dos testemunhos
mais óbvios e midiáticos —a depoente desta terça (25) foi uma funcionária
de segundo escalão. Doravante, a relevância da comissão tende a depender
mais da organização dos trabalhos e da qualidade da apuração.
Aos senadores não basta escandalizarem-se
diante dos holofotes. Há que reunir os documentos disponíveis, exigir os
sigilosos e questionar de modo preciso, em equipe, dando prosseguimento às
perguntas dos colegas. O que não falta, decerto, são desmandos a detalhar.
Terra sem lei
Folha de S. Paulo
Em Rondônia, governador premia invasores
com título fundiário e desconto de 98%
Porteira arrombada, põe-se tranca, reza o
dito popular sobre a imprevidência de quem deveria cuidar da própria segurança.
Um padrão mais sinistro vai se espalhando pelo Brasil dos grileiros: arrombada
a porteira, passe a boiada —o Estado dá um jeito depois.
Sai premiado, como é cada vez mais comum, o
usurpador que devasta. Não é outro o efeito, e não poderia ser, da sanção pelo
governador de Rondônia, Coronel Marcos Rocha (sem partido), de lei que desafeta
2.190 km² em duas unidades de conservação estaduais já invadidas e parcialmente
desmatadas.
Numa canetada, o aliado de Jair Bolsonaro
quase extinguiu a Reserva Extrativista Jaci-Paraná, amputada em 88% da área, e
ainda cancelou 26% do Parque Estadual Guajará-Mirim. Em lugar de
responsabilizar quem esbulhou o poder público de suas terras, consagra-se o
status quo delituoso.
Se isso não redunda em incentivo para
grileiros em Rondônia, é de perguntar o que mais os motivará a seguir
desmatando o que não lhes pertence, para vender ou ocupar com pecuária
improdutiva.
Mas o estado decidiu cortejá-los também com
dinheiro dos contribuintes, concedendo aos invasores desconto de até 98% para
regularizar lotes açambarcados.
Considerando o valor de mercado das terras
na região de União Bandeirantes, o presente implicará prejuízos de muitos
milhões aos cofres públicos. Segundo a geógrafa e pesquisadora da Universidade
Federal de Rondônia (Unir) Amanda Michalski, a superfície desafetada vale R$
1,63 bilhão.
Esse é o rumo que o centrão e a banda
atrasada do agronegócio mancomunada com a Presidência —para nada dizer do
ministro ecocida do Meio Ambiente, Ricardo Salles— gostariam de imprimir à
famigerada regularização fundiária na região amazônica.
O odor de privilégio bolorento a emanar da
lei sancionada ganhou intensidade com o comportamento errático do coronel.
Rocha chegou a remeter à Assembleia Legislativa veto ao diploma digno de
capitanias hereditárias qualificando-o como “maior retrocesso ambiental de
Rondônia”. Horas depois, entretanto, veio a sanção.
Tal é o descompromisso com coerência e
ética no trato da coisa pública manifestado pelos eleitos na onda bolsonarista
de 2018 uma vez no poder. Agem como se não devessem explicações de seus atos,
mal-acostumados pelo exemplo de cima. O Ministério Público do estado, ao
menos, reagiu
prontamente ao abuso do governador.
Bolsonaro amplia escalada para submeter os militares
Valor Econômico
A CPI da Covid caminha para consolidar o já
sabido
O presidente Jair Bolsonaro está decidido a
arrastar as Forças Armadas aonde seu arbítrio determinar. Em relação aos
militares também há uma escalada de Bolsonaro. Domingo, ele fez uma tripla
provocação. Convocou um passeio de motocicletas no Rio, aonde mostrou-se, como
de praxe, sem máscara, poucos dias após dizer que teve novamente sintomas
parecidos com os da covid-19. Depois, convidou para o palanque de suas arengas
totalitárias o general da ativa Eduardo Pazuello, o ex-ministro da Saúde que
faz questão de andar em público sem máscara para agradar ao chefe. Pazuello não
poderia participar de atos políticos, como militar, sem autorização de
superiores. Por fim, ao dar destaque ao general, Bolsonaro premiou-o por
afrontar a CPI da Covid com seu arsenal de mentiras.
Pazuello terá de ser punido, pelo que
dispõe o Estatuto dos Militares. A apuração do caso foi ordenada pelo
comandante do Exército, general Paulo Sérgio de Oliveira, mas Bolsonaro, como
comandante chefe das Forças Armadas ordenou ao ministro da Defesa, Braga Netto,
que proibisse a divulgação de informações a respeito.
Bolsonaro montou mais uma armadilha para os
militares. No ano passado, participou de manifestação antidemocrática em frente
ao QG do Exército em Brasília. Levou o então ministro da Defesa, Fernando
Azevedo, a sobrevoar outro protesto contra as instituições, pelo AI-5.
Marchando em frente, demitiu Azevedo por não ter desautorizado o general Paulo
Sérgio por entrevista em que dissera que o Exército seguia às riscas as
determinações da ciência para deter a expansão da covid-19 nas casernas - o
exato contrário de tudo o que o presidente da República fazia e pregava. E,
antecipando-se a reações, demitiu o Alto Comando das Forças Armadas e nomeou
como ministro da Defesa o general Walter Braga Netto.
Bolsonaro constrangeu o Exército, mas o
pivô da crise, general Paulo Sérgio, foi alçado ao comando do Exército e terá
de ser haver com a nova cilada montada pelo presidente. Pazuello não foi
autorizado por superiores do Exército, mas Bolsonaro, pelo cargo, pode afirmar
que o autorizou a participar da manifestação. Se fizer isso, empurrará goela
abaixo dos comandantes das Forças Armadas a permissão de que militares podem
sim participar de atos políticos - a favor do presidente, claro -, abrindo um
precedente que pode arrastar as patentes inferiores, como cabos, sargentos,
majores etc. É escancarar as portas da democracia para a intervenção dos
militares, com ou sem aval dos comandantes, e instalar, em próprio proveito, a
indisciplina nos quartéis.
Pazuello tornou-se um problema quando foi
ministro da Saúde e quando deixou de ser. Como os bolsonaristas que foram à CPI
da Covid, fez depoimentos que fugiam da verdade para livrar a responsabilidade
de Bolsonaro e, ao mesmo tempo, também a própria na crise sanitária que levou a
mais de 450 mil mortes até agora. O general era, e ainda é, um bode expiatório
óbvio na CPI - o presidente da Comissão, Omar Aziz, atribui-lhe a culpa de tudo
- e Bolsonaro, pelos bons serviços prestados, articula sua candidatura
política, provavelmente no Amazonas, e pode livrá-lo de punição para mostrar
mais uma vez aos militares que é que manda nos quartéis.
Provas de autoridade como essa vão se
repetir mais no futuro, porque Bolsonaro aposta que o antipetismo ainda terá
força para o reeleger, mas tem também um plano B, o de tumultuar as eleições de
2022, como fez seu ídolo, Donald Trump, escorraçado pelos eleitores. O Tribunal
Superior Eleitoral já sinalizou que o voto impresso, supondo que o Congresso o
aprove, é praticamente inexequível para o próximo pleito. Bolsonaro montou o
cenário para ficar no poder, com a narrativa de que seu principal rival, nas
pesquisas, Luiz Inácio Lula da Silva, só o vence fraudando votos nas urnas
eletrônicas.
Bolsonaro não está brincando. Ele precisa
ser demovido de seus planos autoritários pela coerção das instituições. Cabe
aos militares dar outra demonstração de que as Forças Armadas não se metem em
política e rejeitam tentativas de arrastá-las por esse caminho. Esse embate é
imediato. A CPI da Covid, por outro lado, caminha para consolidar o já sabido.
Bolsonaro é uma ameaça à saúde pública e o responsável pela baixa efetividade
do Estado na resposta à pandemia, pela displicência na obtenção de vacinas,
propagação de dúvidas sobre sua eficácia e boicote total a qualquer medida de
prevenção do contágio que não fosse o charlatanismo da cloroquina.
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