quarta-feira, 26 de maio de 2021

Roberto DaMatta - Deus, FH, Lula e o Brasil

- O Globo / O Estado de S. Paulo

Corre nas altas esferas celestes uma anedota instrutiva sobre as preocupações de Fernando Henrique Cardoso, Lula da Silva e a opinião de Deus Todo-Poderoso.

Aflito com a polaridade brasileira, preocupado com o número de almas que, por causa da pandemia, estão lotando o céu e fazendo com que os anjos do purgatório façam jornadas duplas de atendimento, as Altas Esferas chegaram a pensar em ampliar o espaço de recepção do purgatório devido a essa dramática emergência.

Soube disso por meio de um amigo médium. O astral, disse-lhe uma entidade espiritual adiantada e de muita luminosidade, está muito assoberbado, precisamente pela quantidade de almas que vem recebendo. Nessa emergência, comentou que os ex-mortos brasileiros são difíceis. Dão trabalho, pois a maioria chega ao purgatório demandando tratamento privilegiado. Já tivemos que intervir em discussões de caráter político — absolutamente proibidas no outro mundo — quando controvertiam que morreram por sabotagem de vacinas... Os espíritos brasileiros (que são brasileiros de espírito), prosseguiu o médium, demoram a aprender que, no outro mundo, não há disputas de poder, pois o poder do Absoluto Poder é total. E não é fascista, porque é obra da eternidade, que se fez num quando não havia tempo ou espaço.

Um dos maiores problemas das almas brasileiras é a igualdade cósmica. Elas querem manter suas hierarquias materiais nacionais, e isso torna difícil lidar com políticos, juízes, militares, empresários e policiais, bem como com os criminosos por eles mortos em algum confronto.

O médium relatou que, em muitas preleções de adaptação, anjos superiores e poderosos dissolveram manifestações de queixosos que, mesmo no outro mundo, exigiam atendimento usando o “você sabe com quem está falando?”, que não é válido no astral. Aqui, disse a alma por meio do médium, não se pode negar a regra da fila, segundo a qual quem primeiro chega, primeiro é atendido. Numa certa ocasião, tivemos que chamar o Arcanjo Gabriel e seu irmão, Rafael, ambos com estatura suficiente e prontos a usar suas espadas de lâminas de fogo para obrigar as relutantes almas brasileiras a obedecer à fila final que os levaria ao infinito glorioso do nada.

As almas nativas do Brasil querem manter suas prerrogativas sociopolíticas, e uma delas perguntou a um anjo se aqui havia um STF, ficando muito decepcionada ao descobrir que, no plano imaterial, a alma já se encontra no Supremo e já passou pelo umbral, presidido por São Pedro, em cujo gigantesco cinema astral ela vê o filme de sua vida e testemunha todos os seus pecados, devidamente conferidos pelo anjo cobrador em seu computador da velha maçã.

Um dia essas almas recusaram o maná. Queriam pizza ou feijoada. Disseram que o maná celestial não tinha gosto. Houve um novo tumulto, debelado pelos anjos exterminadores comandados por Luis Buñuel.

Foi nesse ambiente um tanto conturbado que Deus resolveu conceder a FH e Lula um encontro. Coisa raríssima, mas concedida porque o almoço que fraternalmente os reuniu tornava-os dignos de uma graça especial.

— Vou conceder a cada um de vocês, ex-presidentes desse Brasil machucado com a pandemia, que o demo vos enviou sem minha expressa permissão, uma grande graça. Perguntem o que mais os preocupa, e Eu responderei.

(Ao ouvir a pergunta, Lula cochichou a FH: “Deus é populista...”.)

— Quem vai perguntar primeiro? —retumbou o Altíssimo, criando uns dois ou três buracos negros.

Fernando Henrique sorriu e, com sua voz melodiosa, falou:

— Deus, Você, que é um ente dos mais capazes e cultos que conheço, um ser cosmopolita e civilizado, quando é que vamos liquidar a má-fé, a hipocrisia e a corrupção no Brasil?

Deus respondeu:

— Meu filho, um dia isso vai acabar. Houve avanços, nas não foi na sua administração.

Voltando-se para Lula, Deus indagou:

—E o que você, Luiz Inácio, pensa disso?

Lula foi veemente:

— Bem, Deus Todo-Poderoso, nos meus governos não houve corrupção, muito menos má-fé e hipocrisia. A herança maldita era enorme. Toda essa narrativa foi inventada por gente que queria condenar a mim, o PT e a política.

Deus ouviu, recordou o conto de Machado de Assis “A igreja do diabo”, que motivou revolucionários debates no céu e no inferno, e, olhando para os dois, respondeu:

— Fiquem tranquilos. Continuem praticando a sagrada comensalidade que une aqui no céu e elege nesse vosso mundo sofrido. Mas prestem atenção: a corrupção, a má-fé e a hipocrisia um dia vão acabar no vosso país, que será justo e democrático. Mas não será na minha administração.

 

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