- O Globo / O Estado de S. Paulo
Corre nas altas esferas celestes uma
anedota instrutiva sobre as preocupações de Fernando Henrique Cardoso, Lula da
Silva e a opinião de Deus Todo-Poderoso.
Aflito com a polaridade brasileira,
preocupado com o número de almas que, por causa da pandemia, estão lotando o
céu e fazendo com que os anjos do purgatório façam jornadas duplas de
atendimento, as Altas Esferas chegaram a pensar em ampliar o espaço de recepção
do purgatório devido a essa dramática emergência.
Soube disso por meio de um amigo médium. O
astral, disse-lhe uma entidade espiritual adiantada e de muita luminosidade,
está muito assoberbado, precisamente pela quantidade de almas que vem recebendo.
Nessa emergência, comentou que os ex-mortos brasileiros são difíceis. Dão
trabalho, pois a maioria chega ao purgatório demandando tratamento
privilegiado. Já tivemos que intervir em discussões de caráter político —
absolutamente proibidas no outro mundo — quando controvertiam que morreram por
sabotagem de vacinas... Os espíritos brasileiros (que são brasileiros de
espírito), prosseguiu o médium, demoram a aprender que, no outro mundo, não há
disputas de poder, pois o poder do Absoluto Poder é total. E não é fascista,
porque é obra da eternidade, que se fez num quando não havia tempo ou espaço.
Um dos maiores problemas das almas
brasileiras é a igualdade cósmica. Elas querem manter suas hierarquias
materiais nacionais, e isso torna difícil lidar com políticos, juízes,
militares, empresários e policiais, bem como com os criminosos por eles mortos
em algum confronto.
O médium relatou que, em muitas preleções de adaptação, anjos superiores e poderosos dissolveram manifestações de queixosos que, mesmo no outro mundo, exigiam atendimento usando o “você sabe com quem está falando?”, que não é válido no astral. Aqui, disse a alma por meio do médium, não se pode negar a regra da fila, segundo a qual quem primeiro chega, primeiro é atendido. Numa certa ocasião, tivemos que chamar o Arcanjo Gabriel e seu irmão, Rafael, ambos com estatura suficiente e prontos a usar suas espadas de lâminas de fogo para obrigar as relutantes almas brasileiras a obedecer à fila final que os levaria ao infinito glorioso do nada.
As almas nativas do Brasil querem manter
suas prerrogativas sociopolíticas, e uma delas perguntou a um anjo se aqui
havia um STF, ficando muito decepcionada ao descobrir que, no plano imaterial,
a alma já se encontra no Supremo e já passou pelo umbral, presidido por São
Pedro, em cujo gigantesco cinema astral ela vê o filme de sua vida e testemunha
todos os seus pecados, devidamente conferidos pelo anjo cobrador em seu
computador da velha maçã.
Um dia essas almas recusaram o maná.
Queriam pizza ou feijoada. Disseram que o maná celestial não tinha gosto. Houve
um novo tumulto, debelado pelos anjos exterminadores comandados por Luis
Buñuel.
Foi nesse ambiente um tanto conturbado que
Deus resolveu conceder a FH e Lula um encontro. Coisa raríssima, mas concedida
porque o almoço que fraternalmente os reuniu tornava-os dignos de uma graça
especial.
— Vou conceder a cada um de vocês,
ex-presidentes desse Brasil machucado com a pandemia, que o demo vos enviou sem
minha expressa permissão, uma grande graça. Perguntem o que mais os preocupa, e
Eu responderei.
(Ao ouvir a pergunta, Lula cochichou a FH:
“Deus é populista...”.)
— Quem vai perguntar primeiro? —retumbou o
Altíssimo, criando uns dois ou três buracos negros.
Fernando Henrique sorriu e, com sua voz
melodiosa, falou:
— Deus, Você, que é um ente dos mais
capazes e cultos que conheço, um ser cosmopolita e civilizado, quando é que
vamos liquidar a má-fé, a hipocrisia e a corrupção no Brasil?
Deus respondeu:
— Meu filho, um dia isso vai acabar. Houve
avanços, nas não foi na sua administração.
Voltando-se para Lula, Deus indagou:
—E o que você, Luiz Inácio, pensa disso?
Lula foi veemente:
— Bem, Deus Todo-Poderoso, nos meus
governos não houve corrupção, muito menos má-fé e hipocrisia. A herança maldita
era enorme. Toda essa narrativa foi inventada por gente que queria condenar a
mim, o PT e a política.
Deus ouviu, recordou o conto de Machado de
Assis “A igreja do diabo”, que motivou revolucionários debates no céu e no
inferno, e, olhando para os dois, respondeu:
— Fiquem tranquilos. Continuem praticando a
sagrada comensalidade que une aqui no céu e elege nesse vosso mundo sofrido.
Mas prestem atenção: a corrupção, a má-fé e a hipocrisia um dia vão acabar no
vosso país, que será justo e democrático. Mas não será na minha administração.
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