O Globo
‘Desovar’ é uma gíria brasileira que significa
se livrar de alguma coisa que pode comprometer. Foi o que aconteceu ontem com o
ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, que pediu demissão no mesmo dia em
que as investigações sobre a compra nebulosa da vacina indiana Covaxin
começaram a ganhar uma dimensão política perigosa para o governo.
À noite, o governo reagiu com o anúncio, feito pelo ministro-chefe da
Secretaria da Presidência, Onyx Lorenzoni, de que processará o deputado federal
Luis Miranda por denunciação caluniosa e seu irmão Luis Ricardo, servidor do
Ministério da Saúde, por prevaricação. As acusações são de que a dupla
falsificou documentos e forjou denúncias sobre a compra da Covaxin com
intenções criminosas, como sugeriu o ministro Lorenzoni.
O relato do governo responde a alguns pontos, rebatendo que Bolsonaro tenha
mandado uma carta ao primeiro-ministro Modi pedindo especificamente a liberação
da vacina Covaxin. A carta, na verdade, falava de outras vacinas, como a
AstraZeneca, que também se utiliza de insumos da Índia. O documento que
mostrava um pagamento adiantado da vacina existiu, mas foi, segundo Lorenzoni,
alterado a pedido do próprio governo brasileiro. Também a presença do que seria
uma empresa intermediária foi desmentida. Lorenzoni explicou que todas as
compras de vacinas contaram com representantes das farmacêuticas no território
brasileiro.
Mas outros pontos obscuros estão em aberto, e os membros da CPI estão
convencidos de que há um esquema gigantesco de corrupção por trás dessa compra.
Certamente, o deputado Luis Miranda e seu irmão mostrarão na CPI documentos
para reafirmar suas acusações, e, agora rompido com o governo e ameaçado de
processo, o deputado, que era um bolsonarista com acesso ao Palácio da
Alvorada, transformou-se em inimigo do governo.
Antes mesmo de ser parlamentar, o deputado federal Luis Miranda era uma figura polêmica. Esteve envolvido em processos de estelionato e calúnia quando morava em Miami. Lá montou esquemas financeiros de compra de veículos usados e investimentos e foi acusado de fraude por diversos clientes. Os dois casos, do ex-ministro Ricardo Salles e da compra da Covaxin, são denúncias de corrupção que tiram do governo seu último bastião, que já vinha sendo corroído desde que os interesses familiares o fizeram se empenhar não em conter a corrupção, mas em controlar ou esvaziar os órgãos de controle, desde o Coaf até a Polícia Federal (PF).
Salles está respondendo a denúncias de conluio com madeireiros para exportação de madeira extraída ilegalmente na Amazônia. Dois delegados da PF que investigaram a ilegalidade do carregamento de madeira foram removidos de suas funções, mas as investigações continuam. Salles perdendo o foro privilegiado, a investigação deverá ir para a primeira instância, saindo do Supremo Tribunal Federal (STF).
O presidente Bolsonaro, que na véspera havia feito um elogio público a Salles, teve de abrir mão dele para não ficar sobrecarregado com denúncias de corrupção em seu governo. Não existe possibilidade de mudança de orientação, e a maior prova é a indicação do novo ministro, Joaquim Alvaro Pereira Leite, ligado ao setor ruralista, que deverá continuar a política mais voltada à produção que à proteção ambiental.
O que acontece nesse setor é fruto da visão do presidente Bolsonaro, e a nomeação a reafirma. O ex-ministro Salles foi jogado para fora do governo porque há outra prioridade nesse campo da corrupção. O governo terá de se dedicar nos próximos dias às denúncias sobre a compra da Covaxin, ainda mal explicada, especialmente porque amanhã os dois irmãos deporão na CPI da Covid.
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