Folha de S. Paulo
A PEC do voto impresso não visa aprimorar o
processo eleitoral
“Aceitarei totalmente os resultados desta
grande e histórica eleição, se eu ganhar.” A declaração, de um cinismo atroz,
data de 2016. O autor, Donald Trump, afinal vitorioso. Mas a tirada ficaria bem
na boca de seu fã alçado ao
Planalto e decidido a ali permanecer a qualquer custo, pelo
tempo que conseguir.
Eis porque, desinteressado das questões de
governo e da sorte do país devastado pela pandemia, ele está em campanha
permanente para se reeleger. Nessa empreitada, entre insultos à imprensa e
ofensas aos adversários, quer o que nenhuma eleição democrática garante a
candidato algum: a certeza da vitória.
Não é outro o objetivo da Proposta de
Emenda Constitucional 135/19, apresentada pela deputada bolsonarista Bia Kicis
(PSL) —a PEC do voto impresso. A ideia é que cada
voto eletrônico gere uma cédula física, a qual, conferida pelo
eleitor, seja depositada em urna indevassável. Na realidade, trata-se de pôr
sob suspeita a votação eletrônica e, por tabela, a confiança nos números
apurados.
Democracias podem funcionar bem sob regras muito diferentes para traduzir as preferências dos eleitores em mandatos, para definir como se constitui o Executivo, e quais suas atribuições e limites frente ao Legislativo e ao Judiciário. São compatíveis com sistemas com muitos ou poucos partidos.
Mas deixam de ser democracias quando a
escolha dos representantes é falseada, permitindo que o resultado do processo
seja definido de antemão. Ou, nas apropriadas palavras do cientista político
Adam Przeworski, da Universidade de Nova York, a democracia é um regime em que
a incerteza
quanto aos resultados eleitorais é institucionalizada.
No Brasil, foi longo o caminho para proteger
o ato de votar da interferência direta dos poderosos. O primeiro
passo foi dado com o Código Eleitoral de 1932, que implantou o voto secreto e a
Justiça Eleitoral. Secreto, mas nem tanto, enquanto candidatos puderam imprimir
as próprias cédulas que entregavam aos eleitores acabrestados e que podiam ser
manipuladas na apuração.
O passo seguinte foi a cédula única
—fornecida pela Justiça Eleitoral— valendo para todos os pleitos a partir de
1960.
Finalmente, em 1996 entrou em cena a
votação por meio eletrônico. Desde então, os brasileiros foram às urnas 11
vezes para escolher os aspirantes a todos os cargos eletivos, sem que os
resultados fossem contestados.
Agora, a PEC do voto impresso não visa
aprimorar o processo eleitoral ou garantir sua integridade. Serve apenas para
disseminar suspeitas, criar confusão e desacreditar o mecanismo em que se
arrima a democracia.
*Professora titular aposentada de ciência
política da USP e pesquisadora do Cebrap.
Nenhum comentário:
Postar um comentário