Valor Econômico
No Brasil, elites recebem mais do Estado do
que os pobres
O país a que chamamos de Brasil convive com
níveis extremos de desigualdade desde o início da colonização europeia. A
escravidão, usada como fator de acumulação de capital por quase 400 anos, nunca
nos deixou, o que explica o estranhamento das elites diante da maioria da
população e seu desdém com a educação do povo, característica ausente na
maioria das nações.
A história, estudada com profundidade,
explica o caminho tomado por cada sociedade. Nenhum povo está fadado ao
fracasso por razões culturais ou origem étnica. Onde há nação, isto é, nos
países onde a maioria dos habitantes se reconhece no outro, na acepção mais
ampla do que chamamos de cultura, é raro ver grupos minoritários se apropriando
da maior parte das riquezas e impedindo o desenvolvimento humano das
concidadãos.
O desafio maior das nações está nas
Américas, onde o processo de colonização europeia se deu de forma violenta, por
meio inclusive do extermínio dos antigos donos dos territórios. Acrescente-se a
isso o modelo econômico baseado na acumulação de capital por meio da
escravização de povos de um terceiro continente, a África.
É importante lembrar que os africanos escravizados foram sequestrados de suas nações. Eram pessoas que pertenciam a um universo cultural próprio, com suas línguas e costumes específicos, transformadas, da noite para o dia, em mão de obra gratuita, primeiro, das lavouras de cana de açúcar no Nordeste, depois, da atividade pecuária e do garimpo em Minas Gerais e, por fim, das plantações de café no Sudeste. Serviram também, claro, ao trabalho serviçal doméstico de famílias abastadas e à atividade, nunca remunerada, no comércio.
Essa ignomínia durou até 1988. O seu fim,
como sabemos, não foi aceito pelas oligarquias rurais, que, após a abolição,
tudo fizeram para dificultar a vida dos ex-escravos, a começar pela pressão
sobre os primeiros governos da República para facilitar a imigração de
europeus, com o objetivo desavergonhado de “embranquecer” a população. Ora, sem
a reparação desses males fundadores da sociedade brasileira, não chegaremos
nunca a lugar algum.
De toda forma, desistir da Ilha de Vera
Cruz seria um equívoco para quem não se considera parte da elite minoritária,
que se considera dona do poder e da abundante riqueza do país. A Constituição
de 1988, mesmo com seus equívocos, representa um marco na busca por uma
sociedade menos desigual. Evidentemente, ao promover avanços civilizadores (na
educação e na saúde públicas e nos direitos individuais e coletivos), provocou
reações no sentido contrário.
“A partir da década de 1990, a distribuição
de renda começou a melhorar, especialmente a partir de 2001. Os mais pobres se
beneficiaram da queda na inflação e das políticas sociais de Fernando Henrique
Cardoso, turbinadas por Luiz Inácio Lula da Silva. No entanto, o crescimento
[econômico] foi modesto e, recentemente, a economia colapsou”, diz Arminio
Fraga no estudo “Estado, Desigualdade e Crescimento no Brasil”.
Armínio, ex-presidente do Banco Central,
está entre os brasileiros da elite econômica que não desistem do país. Rico,
poderia mudar-se para os Estados Unidos, onde já viveu, ou a Europa. Tem
ambições políticas, no sentido de disputar eleições? Até agora, não, embora
essa decisão, apesar de improvável, seja legítima. Armínio quer contribuir com
ideias, muitas ideias. Como sabe que elas esbarram justamente nos interesses
das elites mencionadas aqui, uma de suas missões é mostrar por que estamos
presos de forma injustificável numa espécie de atoleiro.
“Comparando-se o Brasil com os países da
OCDE (que inclui Chile, México, Turquia e os principais avançados), nota-se que
somos o mais desigual”, observa Arminio. Por quê? Quando se atenta para
programas sociais de transferência de renda, conclui-se que:
1. Como proporção da renda, o Brasil é o
país que menos transfere para quem ganha menos e dos que mais transferem para
quem ganha mais (isso mesmo, menos-menos, mais-mais);
2. Em termos absolutos, as transferências
para os 20% mais ricos representam quase a metade do total, com destaque para
aposentadorias e pensões. No Brasil, o Estado age como um Robin Hood às
avessas.
O ex-presidente do BC chama atenção para um
fato inconveniente, revelado por pesquisas econômicas. “A partir de 2006, a
distribuição de renda parou de melhorar e há quatro anos passou a piorar, uma
tragédia. Há que se ter em mente também a relevante e persistente falta de
mobilidade social, ou seja, é baixa a chance de uma pessoa criada em família
pobre sair da pobreza. Há, portanto, muito espaço para melhorar, tanto
aperfeiçoando os mecanismos de proteção social quanto por meio de investimentos
sociais, que nos aproximariam do ideal da igualdade de oportunidades.”
O quadro se agrava, revela o economista,
quando muitos enriquecem se aproveitando de seu poder político e econômico para
obter benesses do Estado. “Nesse ambiente, predominam a frustração, o desalento
e a descrença geral no sistema político”, afirma. “Florescem também populismos
e demagogias de todos os matizes que, com suas propostas simplistas e enganosas
de que tudo é possível sem custos, impedem uma discussão desapaixonada sobre as
grandes questões que importam para o bom futuro do país.”
Não se tenha dúvida: foi nesse que a
maioria dos eleitores brasileiros, historicamente avessos a votar em
extremistas à direita e à esquerda do espectro político, elegeu Jair Bolsonaro,
um presidente que, cotidianamente, desafia, com sua incontinência mental e
verbal, os avanços mais civilizadores de nossa jovem democracia.
Por outro lado, quando critica “propostas
simplista e enganosas de que tudo é possível sem custos”, Arminio está se
referindo aos partidos de esquerda. Esta, com exceção do virtuoso primeiro
mandato de Lula (2003-2006) ainda não fez as pazes com a aritmética das contas
públicas, com a necessidade de se ter um orçamento público sempre equilibrado,
do contrário, os efeitos colaterais do desequilíbrio pesarão mais sempre sobre
os ombros da camada mais pobre da população, justamente a que mais necessita do
apoio do Estado.
Na próxima semana, esta coluna abordará os aspectos que tornam o Estado brasileiro um elemento concentrador de renda, distorcendo sua missão precípua, dada pela Constituição, de promover a igualdade.
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