O Globo
O governo terminou o dia envolvido num
nebuloso caso de compra favorecida da vacina Covaxin e com Ricardo Salles tendo
que se demitir para tentar fugir do Supremo Tribunal Federal e da Polícia
Federal. Era o retrato de uma administração desmontando. Mesmo assim, o projeto
de demolição institucional continuou com a aprovação na Comissão de
Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara de um projeto de lei que ameaça ferir de
morte os direitos dos indígenas. O ministro Onyx Lorenzoni usou um versículo da
Bíblia para definir os que se opõem à atual administração como sendo os
“dominadores do mundo das trevas” e “forças do mal”. As palavras da Carta aos
Efésios são boas, mas para definir o próprio governo.
O ministro Lorenzoni ameaça jogar céus e
terra contra o servidor Luis Ricardo Miranda e o deputado Luis Miranda, que
contaram ter avisado o presidente, em 20 de março, de pressões indevidas para a
compra da Covaxin.
— Deputado Luis Miranda, Deus está vendo.
Mas você não vai se entender só com Deus não. Vai se entender com a gente
também, o senhor vai explicar e vai pagar — disse Onyx.
Em seguida, disse que os irmãos serão processados por produção de prova falsa e denunciação caluniosa. O relator da CPI, Renan Calheiros, disse que isso é coação de testemunhas e avisou que pode pedir a prisão do secretário-geral da Presidência.
O dia começou com manifestantes indígenas
na Esplanada tentando evitar os tiros de borracha e as bombas de efeito moral
que foram lançados contra eles na véspera. Protestavam contra a tramitação de
um Projeto de Lei que foi tirado do fundo do baú pelo bolsonarismo para atacar
direitos indígenas. O PL foi apresentado em 2007 por um deputado falecido em
2013. Ele é, obviamente, inconstitucional, mas na CCJ da deputada Bia Kicis, e
dominada por parlamentares ruralistas, acabou aprovado. Foi mais um absurdo num
dia cheio.
O caso que dominou o dia foi a única vacina
pela qual o governo se empenhou. A negociação foi mais rápida, feita com um
intermediário, a Precisa, que é sócia de uma empresa que já foi investigada por
fraude no Ministério da Saúde. O preço era mais alto e houve um pedido de
pagamento adiantado. O servidor Luis Ricardo Miranda, do Ministério da Saúde,
disse que se sentiu pressionado a fechar o contrato e foi com o seu irmão, o
deputado federal Luis Miranda, entregar as suspeitas ao presidente da
República. Bolsonaro recebeu os irmãos no sábado, no Alvorada. Coisa para
poucos, ser recebido pelo presidente em casa numa tarde de fim de semana. A
pergunta que pairou no ar ontem foi: o que o presidente fez com a denúncia?
— Agora a investigação vai para outro rumo,
porque se o presidente, estou dizendo ‘se’, foi comunicado, ele prevaricou. E
prevaricação do presidente é algo muito grave — disse o senador Omar Aziz,
presidente da CPI da Covid.
A confusão já estava armada no país quando
Ricardo Salles anunciou que havia pedido exoneração do cargo. No dia anterior,
foi coberto de elogios pelo presidente. E caiu. Por quê? Porque Salles é hoje
um homem com a polícia em seus calcanhares e com dois processos no Supremo.
Seus sigilos estão sendo quebrados pela Polícia Federal e seu telefone foi
enviado para os Estados Unidos, porque ele o entregou à PF mas não deu a senha.
Assim termina a pior gestão do Ministério do Meio Ambiente. Não foi apenas
lesiva, foi criminosa. Uma das investigações, a Akuanduba, foi iniciada depois
que as autoridades ambientais americanas comunicaram ao Brasil sobre a chegada
lá de madeira sem documentação. O envolvimento de Salles está sendo
investigado. Sua demissão fará com que tudo isso caia para a primeira
instância, onde ele acha que vai se safar.
No mesmo momento, na Câmara, passava mais
uma boiada, para deixar claro que não era só Salles o problema. A proposta
considerada constitucional, pela CCJ, fere a Constituição frontalmente. Entre
os absurdos do PL há a permissão para o contato de povos isolados ser feito até
por entidades privadas.
O anúncio de Onyx no Planalto, de que
mandou instaurar inquéritos contra os irmãos Miranda, fere várias leis,
inclusive a de Abuso de Autoridade, me informou uma fonte do Ministério
Público. “O presidente não se defende, e usa a CGU e a PF para intimidar uma
testemunha”, resumiu a fonte. Esse dia, pelo visto, não vai acabar tão cedo.
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