O Estado de S. Paulo
O País corre perigo quando mudanças
institucionais passam por simples aventuras
O sistema político brasileiro requer
lideranças empenhadas, sobretudo na Presidência, para a promoção de iniciativas
que vão ao encontro do interesse público. O Congresso, por sua dinâmica
interna, tende a favorecer interesses localizados e muito heterogêneos. A falta
de coordenação e clareza de propósitos pode conduzir o processo legislativo a
resultados frustrantes, quando não desastrosos. Vimos isso com a PEC
Emergencial. O mesmo acaba de acontecer com a MP da Eletrobrás.
A proposta declarada de privatização da
estatal ter-se-á transformado, ao fim de sua tramitação, numa colcha de
retalhos na qual o Congresso, de maneira oblíqua e temerária, assumiu
indevidamente o papel de planejador do sistema elétrico brasileiro. Como
escreveram especialistas, a falta de liderança executiva para assegurar alguma
coerência à proposta fez a privatização de uma estatal do setor ser transmutada
numa intervenção parlamentar na política energética do País, visando interesses
inconfessáveis. As consequências estão por vir.
Cabe lembrar que riscos idênticos cercam outra reforma muito relevante em tramitação: a administrativa, veiculada pela PEC n.º 32/2020, de autoria do Executivo. Na sua exposição de motivos são anunciadas as três grandes balizas da proposta: modernizar o Estado, conferindo maior dinamicidade, racionalidade e eficiência à sua atuação; aproximar o serviço público brasileiro da realidade do País; e, por fim, garantir condições orçamentárias e financeiras para a existência do Estado e para a prestação de serviços públicos de qualidade.
No site dedicado à PEC estão
listados os trabalhos que a orientaram. Diferentemente do último grande
movimento de reforma administrativa no Brasil, capitaneada por Bresser-Pereira
no primeiro governo FHC, a proposta atual parece motivada por um diagnóstico
difuso sobre os excessos e deficiências da gestão pública brasileira. Ela não
vem precedida por nada como o Plano Diretor de Reforma do Aparelho de Estado
(PDRAE), documento que consolidava diagnósticos, diretrizes e arranjos no caso
anterior.
Em novembro de 2020, com o objetivo de dar
maior transparência ao debate público sobre a matéria, solicitei ao Ministério
da Economia, mediante requerimento apresentado no Senado, informações relativas
à dimensão fiscal da PEC 32/2020. Buscamos compreender com mais rigor os
números que respaldam a reforma. Como resposta recebi 500 páginas compostas
quase integralmente por anexos da Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2021. Fui
informado de que os benefícios fiscais da PEC dependerão de normas
infraconstitucionais subsequentes, as quais se tornarão viáveis pelo novo
arranjo instaurado pela própria PEC.
Importante ter claro que reformas
constitucionais demandam muito cuidado. Uma vez inscrito na Constituição, o
novo dispositivo só poderá ser alterado por outra PEC, sujeita a rito especial
e quórum qualificado para aprovação (3/5 dos parlamentares de cada Casa, em
dois turnos). Por óbvio, os custos políticos para formação de consensos em
torno de PECs são muito aumentados. Dito de outra forma: erros de desenho ou
mesmo imprecisões conceituais, mais facilmente sanáveis na esfera infraconstitucional,
podem acarretar enorme insegurança jurídica e elevado litígio no caso de
emendas à Constituição.
Particularmente preocupante é a estratégia
de reforma concentrada na via constitucional em contexto de liderança política
dúbia, sobretudo no Executivo. A PEC 32/2020 pode provocar uma mobilização
acirrada de grupos de interesses em busca de gravar na Constituição direitos e
privilégios. Os jornais já noticiam, por exemplo, articulações para que a PEC
fixe um rol mínimo de carreiras consideradas típicas de Estado, cujo estatuto
jurídico será diferenciado e mais protetivo. A constitucionalização de regras
administrativas sempre incorre nos riscos e problemas relativos ao que alguns
estudiosos denominaram retrocesso burocrático no bojo da Carta Magna,
perspectiva presente no PDRAE.
É questionável o foco em alterações
constitucionais quando medidas modernizantes são plenamente factíveis no plano
da legislação ordinária ou complementar. A Emenda Constitucional n.º 19,
aprovada em 1998, estabeleceu a possibilidade de demissão por insuficiência de
desempenho do servidor estável. O Projeto de Lei Complementar n.º 248,
regulamentado o instrumento, foi encaminhado pelo governo FHC ao Congresso em
19/10/1998 e desde 2007 aguarda votação final pelo plenário da Câmara dos
Deputados. O teto remuneratório do funcionalismo público existe, no seu formato
atual, desde 2003. Em 2016 a Comissão Especial do Senado apresentou o PL n.º
6.726 para regulamentá-lo. Após aprovação pelo plenário do Senado, o projeto
aguarda designação de comissão especial na Câmara. Mais exemplos poderiam ser
dados.
O momento, portanto, pede ponderação. No contexto pré-eleições, vejo o Congresso lidando com reformas à deriva, sem envolvimento do Executivo. O País corre perigo quando mudanças institucionais passam por simples aventuras, especialmente as que envolvem alterações constitucionais profundas.
*Senador (PSDB-SP)
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