- O Globo
Denúncia de corrupção na compra da Covaxin
muda o jogo na CPI da Covid
Desde que a CPI da Covid começou, o que
mais se ouve entre políticos, gestores de crise e até integrantes da própria
comissão é que seria muito difícil as investigações mudarem a percepção da
população a respeito de Jair Bolsonaro. “Quem já acha que Bolsonaro é genocida
vai continuar achando, e quem gosta da gestão do presidente na Saúde vai
continuar gostando”, sintetizou em abril um consultor de crise que estava
enfurnado na CPI. Na opinião desse e de outros personagens, só uma variável
seria capaz de alterar o rumo das coisas: “Se aparecer um caso de corrupção, o
jogo muda”. Até ontem, essa era apenas mais uma tese entre tantas que se
espalham nas conversas da corte. Não mais, porque a denúncia de corrupção
apareceu.
Um servidor concursado do Ministério da
Saúde, irmão de um deputado francamente bolsonarista, contou aos repórteres do
GLOBO ter avisado o presidente da República de uma transação que
reunia militares ligados ao ex-ministro Eduardo Pazuello e a lobistas de larga
ficha corrida para a compra irregular de lotes da vacina indiana Covaxin. Se a
negociata tivesse ido adiante, o possível prejuízo aos cofres públicos seria de
R$ 222 milhões — algo em torno de cem rachadinhas do Queiroz.
Segundo o servidor público Luis Ricardo Miranda, os representantes da empresa Precisa, que importa a vacina indiana, queriam que o governo pagasse adiantado US$ 45 milhões no recebimento de 300 mil vacinas, quando o previsto no contrato eram 4 milhões de doses sem pagamento antecipado. Mas os documentos de importação mostravam que os lotes estavam muito perto da data do vencimento, o que impediria a aplicação da vacina em larga escala.
Não acabava aí. A nota fiscal mostrava que
o dinheiro não iria para nenhuma das firmas vendedoras, e sim para a conta de
uma terceira companhia, uma offshore em Cingapura que não era citada no
contrato. Miranda diz que se recusou a assinar a autorização de importação. E
que passou a ser pressionado a fazê-lo por coronéis que eram seus superiores
hierárquicos — e que o procuravam à noite, nos fins de semana, por telefone e
pessoalmente. Chamou o irmão, um deputado federal também chamado Luis Miranda
(DEM-DF), e foi com ele procurar o presidente da República.
Para quem não se lembra de Miranda,
trata-se de um ex-youtuber que se tornou conhecido pelos processos que sofreu, acusado
de aplicar golpes do tipo “ganhe dinheiro fácil” no Brasil e nos Estados
Unidos. Era também dono de uma clínica de estética. Certamente não é santo, mas
as denúncias de corrupção nunca saem dos conventos.
Pois bem. Ontem, o deputado contou em
diversas entrevistas que Bolsonaro ouviu toda a história e recebeu os
documentos sobre o caso diretamente de suas mãos. O presidente, segundo ele,
disse ainda que encaminharia as informações à diretoria-geral da Polícia
Federal. Mas nunca mais deu retorno, nem aceitou os pedidos de novas
audiências. Continuou dizendo que, no seu governo, não há corrupção. Numa das
últimas vezes, cercado de generais numa base do Exército na Amazônia, Bolsonaro
afirmou até que seu governo é limpo “graças às pessoas que me cercam em
Brasília”, especialmente os militares.
Só no fim da tarde desta quarta-feira,
diante da ampla repercussão das denúncias, o governo acordou. Revidou com uma
agressividade típica dos momentos mais tensos do bolsonarismo. Coube ao
ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República, Onyx Lorenzoni, dizer
que os documentos dos Miranda são falsos e informar que Bolsonaro — agora sim —
pediu à Polícia Federal e ao procurador-geral da República que investiguem a
dupla por “denunciação caluniosa” e “prevaricação”.
— O governo Bolsonaro vai continuar, sim,
sem corrupção —disse Lorenzoni.
E atacou:
— Deputado Luis Miranda, o senhor vai pagar
pela irresponsabilidade, pelo mau-caratismo, pela má-fé e pela produção de
provas falsas.
Daqui em diante, a CPI e a imprensa se
debruçarão sobre o caso e tentarão extrair dele o que é fato e o que é
narrativa. Mas é possível afirmar que ele já mudou o jogo. A atitude defensiva
de Lorenzoni mostra que os alertas de perigo do Planalto apitaram alto, não só
porque se trata de um deputado bolsonarista, mas porque a suspeita caiu no colo
do presidente da República e de seus militares. E isso num momento em que o
discurso anticorrupção que o elegeu se mostra absolutamente corroído.
Certamente não foi coincidência que o
ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, tenha anunciado sua saída do governo meia hora antes da
entrevista de Lorenzoni. Salles, que Bolsonaro não se cansa de elogiar, é
investigado justamente por suspeita de corrupção e favorecimento ilícito de
madeireiras clandestinas que atuam na Amazônia. Quando Lorenzoni começou a
falar no palácio, portanto, ele já estava fora do governo. Juntou-se a Pazuello
no panteão de ex-ministros. Vai ver foi por isso que Lorenzoni achou que dava
para dizer que, no governo Bolsonaro, não tem corrupção.
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