quinta-feira, 3 de junho de 2021

O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais

EDITORIAIS

Instituições têm de reagir a avanços do bolsonarismo

O Globo

Acertou o governador Paulo Câmara, de Pernambuco, ao exonerar o comandante da Polícia Militar (PM) no estado em virtude da repressão violenta aos protestos contra o presidente Jair Bolsonaro no último sábado. Recife foi a única entre 21 capitais onde policiais reagiram com brutalidade diante de uma manifestação pacífica, sem nenhuma justificativa para isso. Dois atingidos pelas balas de borracha disparadas pela PM pernambucana contra os manifestantes perderam a visão num dos olhos. Uma vereadora petista foi agredida com spray de pimenta.

Acertou também a Secretaria de Segurança Pública de Goiás ao afastar o policial que prendeu um professor por ter se negado a retirar do carro uma faixa que chamava Bolsonaro de “genocida”. Tem se multiplicado pelo país, com dedicação especial da Advocacia-Geral da União, o uso de dispositivos autoritários da Lei de Segurança Nacional para cercear o direito à livre manifestação e à expressão de opiniões políticas.

As decisões em Pernambuco e Goiás são o recado correto a transmitir às vozes que semeiam a insubordinação e a anarquia nos quartéis policiais e militares e àqueles que tentam restabelecer o clima de repressão e vigilância dos tempos da ditadura militar.

Bolsonaro já deu um sem-número de provas de que não terá nenhum tipo de pudor em insuflar policiais e milicianos contra seus inimigos políticos. Não há maior evidência disso do que o desdém com que tem tratado a hierarquia militar no caso do ainda general da ativa — e ex-ministro da Saúde responsável pelo desastre na gestão da pandemia — Eduardo Pazuello, que se recusa a ir para a reserva, apesar de ter flagrantemente violado o regulamento do Exército ao participar de manifestação política ao lado do presidente no Rio de Janeiro.

Agora, Bolsonaro pressiona o Alto-Comando do Exército a não punir Pazuello, com base no argumento estapafúrdio de que o passeio de motocicleta não tinha motivação política. Não punir um general em tal situação é um incentivo claro à insubordinação e à anarquia nos quartéis. Mas não ficou nisso. Ainda por cima, Bolsonaro cometeu a desfaçatez de trazer Pazuello de volta ao Planalto num cargo de assessoria. Não só ele não foi punido, como foi premiado.

Quem frequenta o universo paralelo das redes sociais e grupos de WhatsApp do bolsonarismo tem sido apresentado a uma enxurrada de informações fraudulentas sobre a pandemia, estimulando a revolta contra instituições como o Congresso, o Supremo e governos estaduais. Não é segredo o alcance que esse tipo de mensagem tem nos baixos escalões da PM e das Forças Armadas. Bolsonaro não esconde querer um Exército para chamar de seu, nem suas intenções claramente golpistas caso as urnas não lhe sejam favoráveis em 2022.

Diante de desafios explícitos, as instituições precisam reagir, em nome das liberdades de expressão e manifestação e da democracia, exatamente como fizeram os governos de Pernambuco e Goiás. É preciso que as Forças Armadas — em particular, o Alto-Comando do Exército — punam Pazuello com o rigor necessário para que fique claro às tropas que elas não estão subordinadas ao projeto político de Bolsonaro

E se Bolsonaro tivesse ouvido Luana Araújo em vez de Nise Yamaguchi?

O Globo

O depoimento da infectologista Luana Araújo à CPI da Covid ofereceu a oportunidade de pôr em contraste o que o Brasil se tornou na pandemia — e o que poderia ter sido. Inteligente, preparada, articulada, educada e paciente com os presentes, ela respondeu às questões mais estapafúrdias com clareza e firmeza.

Ao longo de mais de sete horas, trouxe para a CPI aquilo que mais tem feito falta aos debates: a voz da razão. Deixou evidente a ignorância dos senadores que saíram em defesa da cloroquina, do famigerado “tratamento precoce” e das demais fabulações que migraram das redes sociais para gabinetes da Presidência da República e do Congresso.

Por uma dessas coincidências fortuitas, Luana prestou depoimento no dia seguinte à oncologista Nise Yamaguchi, uma das maiores porta-vozes do curandeirismo e do negacionismo que brotam nos grupos de WhatsApp, infestam as hostes bolsonaristas e deságuam nas pilhas de papéis com informações fraudulentas, ideias sem nexo e conclusões absurdas sobre as mesas dos senadores governistas que integram a “bancada da cloroquina”.

Mais do que respostas, Luana deixou no ar uma pergunta perturbadora: por que o governo desprezou um quadro tão qualificado? Por que, como ficou claro ontem, o presidente da República dava ouvidos a Yamaguchi e ao “gabinete paralelo” que o aconselhava à revelia do Ministério da Saúde, enquanto há no Brasil gente tão preparada, disposta e competente quanto Luana?

Formada pela UFRJ com mestrado na Universidade Johns Hopkins, Luana foi convidada pelo ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, a ocupar a Secretaria de Enfrentamento à Covid. Ficou dez dias e foi dispensada. Quando lhe perguntaram o motivo, foi irônica: “Também gostaria de saber”. Informaram-lhe apenas que sua nomeação não fora aprovada.

No depoimento à CPI, ela dá pistas sobre as causas da dispensa. Durante a exposição técnica, objetiva, demolidora, não ficou cloroquina sobre cloroquina. Luana decifrou o funcionamento da ciência, desmascarou o “tratamento precoce”, defendeu medidas de restrição e foi implacável com o negacionismo do atual governo: “É como se a gente estivesse escolhendo de que borda da Terra plana vamos pular”. Noutro momento certeiro, disse: “A ciência não tem lado. O que existe é ciência bem feita e ciência mal feita”.

A CPI tem mostrado que o governo prefere se cercar dos adeptos do “neocurandeirismo”. Está cada vez mais bem delineado o aconselhamento paralelo por nomes como Yamaguchi. Embora sem cargo no governo, ela participou de reuniões no Planalto e teve ingerência em políticas públicas. Chegou a discutir minutas de decreto para ampliar o uso da cloroquina, droga ineficaz contra a Covid-19.

É evidente que Bolsonaro perdia tempo com charlatães, enquanto poderia ter à disposição técnicos de excelência como Luana. Infelizmente, inteligência, formação e civilidade parecem não caber num governo mais preocupado com ideologia do que com as quase 470 mil vidas perdidas.

Indisciplina premiada

O Estado de S. Paulo

O presidente Jair Bolsonaro nomeou o general intendente Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde, para a Secretaria de Estudos Estratégicos da Secretaria Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República. Com esse gesto, o presidente premiou um oficial militar indisciplinado, que desprezou publicamente o espírito da farda que veste. As consequências desse gesto são nefastas – e potencialmente perigosas.

A nomeação não causa surpresa. O intendente Pazuello vem demonstrando há muito tempo ter a principal – talvez única – qualidade exigida por Bolsonaro em sua administração: lealdade canina ao chefe. Na CPI da Pandemia, o ex-ministro da Saúde agrediu a inteligência alheia de maneira constrangedora para defender Bolsonaro, o principal responsável pelas enormes dificuldades que o Brasil enfrenta no combate à pandemia de covid-19.

Não bastasse isso, o intendente foi a um comício do presidente Bolsonaro, em óbvia afronta ao regulamento das Forças Armadas e à Constituição, que proíbem a atividade político-partidária aos militares da ativa, caso do general Pazuello. Para adicionar insulto à injúria, o oficial, para tentar evitar punição, justificou-se diante do Comando do Exército com a patranha de que a manifestação bolsonarista não era “política”, e sim apenas um singelo “passeio de moto”.

Desse modo, Pazuello seguiu à risca o manual bolsonarista de desfaçatez: depois de ter franqueado o Ministério da Saúde ao charlatanismo, o general fez troça da disciplina e da hierarquia militares, testando os limites institucionais – exatamente como Bolsonaro faz desde que foi um mau militar.

Para os celerados bolsonaristas, o desrespeito às instituições é sinal de valentia – essa gente considera que os pilares do regime democrático estão apodrecidos pela corrupção generalizada e pela ideologia comunista e por isso devem ser demolidos. Melhor ainda se esse combate for travado por meio de cinismo, como mostrou a indecente defesa apresentada pelo intendente Pazuello ao Exército.

Essa aventura irresponsável está conduzindo o País para um terreno minado. Bolsonaro entregou a um general insubordinado um cargo que tem entre suas atribuições elaborar análises “para o planejamento de ações governamentais com vistas à defesa da soberania e das instituições nacionais e à salvaguarda dos interesses do Estado”, conforme o Decreto 10.374. Além da óbvia afronta de Bolsonaro às Forças Armadas, que credibilidade terão os estudos em áreas tão sensíveis produzidos por um secretário que vê de maneira tão equivocada os interesses do Estado e valoriza tão descaradamente os interesses próprios e de Bolsonaro?

Na caquistocracia bolsonarista, contudo, isso é irrelevante. Com a nomeação do indisciplinado e incompetente Pazuello, Bolsonaro confirma a profunda mediocridade de seu governo. Mais grave, contudo, é que o presidente consagra como princípios a insubordinação e a quebra da hierarquia militar, exatamente à sua imagem e semelhança. Convém lembrar que no mais recente momento da história nacional em que isso aconteceu, o presidente da República que estimulou a indisciplina militar foi afastado pelas Forças Armadas.

Engolfado pela pandemia e pela perda de quase meio milhão de brasileiros, o Brasil não precisa de desordem militar. O País está pacificado desde 1985, com a culminação do processo de transição do regime militar para a democracia. Desde aquele momento, os militares retiraram-se da cena política. Não há hoje nenhuma questão ideológica que justifique essa tensão que Bolsonaro provoca nos quartéis e no País.

Na verdade, o presidente Bolsonaro parece interessado em submeter as Forças Armadas a seus propósitos autoritários, mas as Forças Armadas certamente não se têm deixado submeter a interesses mesquinhos nem deixarão que se instaure em suas fileiras a desobediência sistemática. Se o fizessem permitiriam que se instalasse na tropa uma ruptura institucional que, depois de tantas lutas pela restauração da democracia, seria inadmissível diante dos brasileiros e diante do mundo.

Bolsonaro, em resumo, nomeou o intendente Pazuello pensando escarnecer dos militares. Mas o escarnecido é o País e, antes dele, um comandante em chefe que se comporta como chefe de milícia.

Os perigos de uma Polícia militante

O Estado de S. Paulo

As cenas da violência praticada pela Polícia Militar (PM) de Pernambuco contra manifestantes no Recife, no sábado passado, dia 29 de maio, são de enorme gravidade. A ação da PM pernambucana não foi apenas desproporcional, o que já seria motivo para uma rigorosa investigação. Há suspeitas de uma atuação política da polícia, o que é absolutamente incompatível com o Estado Democrático de Direito.

Assim como nas outras 200 cidades em que houve manifestação contra Jair Bolsonaro, no Recife elas ocorreram de forma pacífica. As pessoas pediram a vacina contra covid e o impeachment do presidente. Com o protesto aproximando-se do fim, a PM de Pernambuco, sem nenhum motivo aparente, iniciou truculenta repressão, usando balas de borracha, bombas de gás lacrimogêneo e spray de pimenta contra os manifestantes.

Os tiros da polícia feriram gravemente duas pessoas no rosto. Daniel Campelo da Silva, de 51 anos, perdeu o globo ocular esquerdo, além de ter sido atingido nas costas. Jonas Correia de França, de 29 anos, que voltava do trabalho, perdeu a visão do olho direito.

“A polícia é para proteger cidadãos de bem, mas vimos policiais massacrando o povo cruelmente”, disse Julio Campelo, filho de Daniel Campelo da Silva. As cenas da atuação da PM são escandalosas, com policiais atirando contra as pessoas que tentavam socorrer os feridos.

A vereadora Liana Cirne (PT-PE) registrou boletim de ocorrência, por ter sido agredida pela PM com spray de pimenta enquanto conversava com policiais dentro de uma viatura. Há relatos também de ação abusiva contra o repórter fotográfico João Carlos Mazella. De acordo com o Sindicato dos Jornalistas de Pernambuco, ele recebeu voz de prisão e foi obrigado a entregar seu equipamento durante o protesto.

O governador de Pernambuco, Paulo Câmara (PSB), exonerou o comandante da PM, Vanildo Maranhão, e afastou sete agentes envolvidos na operação do dia 29 de maio. Também ordenou a abertura de investigação sobre a atuação da PM. Em nota, o Ministério Público de Pernambuco afirmou que vai apurar os fatos relacionados à ação da PM durante a manifestação.

De fato, é preciso investigar as causas e punir os responsáveis. Uma atuação policial dessa natureza, absolutamente inadequada, não pode ficar sem consequências. A PM tem de saber – e experimentar na prática – que está sob rígido controle da lei e do governo estadual. Não cabe impunidade ao uso arbitrário da força policial contra a população.

A ação truculenta da PM de Pernambuco contra opositores de Jair Bolsonaro deve também servir de alerta para um tema extremamente sério, que exige ser tratado sem simplismos e sem ingenuidades. 

Desde os tempos de deputado, Jair Bolsonaro cultiva a proximidade com grupos de policiais estaduais. Mais de uma vez, apoiou movimentos e motins de policiais. Na Presidência da República, essa tática política não foi abandonada. Por diversos meios, o presidente Jair Bolsonaro vem tentando estabelecer uma relação direta, de natureza político-ideológica, com soldados e policiais, em evidente desrespeito aos limites do cargo e às respectivas esferas dessas categorias.

Além disso, o bolsonarismo almeja subverter os marcos institucionais das Polícias. No início deste ano, o Estado revelou a tentativa, por parte de parlamentares bolsonaristas, de dar andamento a dois projetos de lei orgânica das Polícias Civil e Militar, que, entre outros pontos, restringiriam o poder dos governadores sobre essas corporações.

Sob o pretexto de uniformizar a estrutura das Polícias estaduais, as propostas legislativas subordinariam as forças de segurança estaduais a interesses políticos do governo central. Trata-se de medida inconstitucional clara e evidentemente muito perigosa.

A agressão da PM de Pernambuco a manifestantes pacíficos merece rigorosa apuração. Não deve haver dúvidas sobre a atuação policial. Num Estado Democrático de Direito, polícia e política não se misturam, apesar dos esforços do Palácio do Planalto em sentido contrário.

A indústria afundou de novo

O Estado de S. Paulo

Durou pouco a recuperação da indústria, um setor diferenciado, em outros tempos, como o mais dinâmico e mais inovador da economia brasileira. Com a queda de 1,3% em abril, a produção industrial acumulou um tombo de 4,4% em três meses, ficando de novo abaixo do patamar pré-pandemia – mais precisamente, 1% abaixo do nível de fevereiro de 2020. A última queda mensal ocorreu em 18 das 26 atividades pesquisadas. Isso confirmou mais uma vez as limitações de uma retomada com desemprego persistente – 14,8 milhões de pessoas no primeiro trimestre do ano – e com os consumidores muito empobrecidos. 

O quadro pode parecer muito bom quando as comparações envolvem o pior período da crise do ano passado. Em abril a indústria produziu 34,7% mais que um ano antes. No primeiro quadrimestre o total produzido superou por 10,5% o resultado de janeiro a abril de 2020. Mas esse confronto envolve uma base muito rebaixada, o bimestre março-abril do ano passado, quando a produção diminuiu 22,3%. Nos 12 meses até abril deste ano, o resultado, ainda positivo, foi um crescimento de 1,1%.

O pouco vigor da recuperação fica mais claro quando se examina toda a trajetória da retomada. A primeira reação à grande queda de março-abril pareceu forte. A produção cresceu 7% em maio e 9,5% em junho, mas isso ainda foi insuficiente para anular a perda do bimestre anterior. Em julho, no entanto, o volume produzido aumentou 8,3% e, a partir daí, a evolução mensal decresceu, chegou a 0,2% em janeiro e se tornou negativa nos três meses seguintes, com quedas de 1% em fevereiro, 2,2% em março e 1,3% em abril.

Nesse percurso, a indústria chegou a sair do buraco, por algum tempo, mas acabou de novo caindo. O curto fôlego da recuperação é em boa parte atribuível ao aperto financeiro dos consumidores. Reduzido a partir de setembro, o auxílio emergencial foi suspenso em janeiro e só retomado, com nova redução, em abril. Além disso, o desemprego continuou muito alto. A desocupação no Brasil já era bem maior que na maior parte das economias emergentes no ano passado, quando a pandemia surgiu, e assim permaneceu em 2021.

O aperto das famílias está refletido na produção de bens de consumo. A fabricação de bens de consumo duráveis, como veículos e eletroeletrônicos, despencou 20,9% em março e 78,8% em abril do ano passado, reagiu fortemente nos meses seguintes, começou a enfraquecer no fim de 2020 e caiu seguidamente nos quatro primeiros meses deste ano.

A produção de bens de consumo semiduráveis e não duráveis – categoria onde se incluem vestuário, calçados, produtos de higiene e alimentos – oscilou bem menos, mas já voltou a cair, diminuindo 0,2% em fevereiro, 10,7% em março e 0,9% em abril. As famílias estão procurando economizar também nas compras do dia a dia.

A contenção dos gastos familiares já havia aparecido nos dados do varejo. No primeiro trimestre as vendas do comércio foram 0,1% menores que nos três meses finais de 2020 e 0,6% inferiores às de igual período de 2020. O balanço de março mostrou recuo das vendas em sete das oito categorias pesquisadas. Só houve resultado positivo (+3,3%) em hipermercados, supermercados e outros comércios de alimentos. Ainda assim, milhões de pessoas só puderam comer, nos primeiros meses do ano, graças a campanhas de distribuição de alimentos.

Além do desemprego superior a 14% da força de trabalho, as famílias tiveram de enfrentar uma forte onda de inflação. No ano, até abril, o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) subiu 2,37%. Em 12 meses a alta chegou a 6,76%. O limite de tolerância oficialmente fixado para todo o ano é de 5,25%. Pelas projeções publicadas até agora, esse limite será estourado.

Em seis dos dez anos entre 2011 e 2020 o desempenho do setor industrial foi negativo. Nos demais, foi abaixo de medíocre. O melhor resultado nesse período foi a pífia expansão de 2,5% em 2017. Reindustrializar o País deveria ser uma prioridade da política econômica, mas hoje é difícil encontrar, em Brasília, uma política merecedora desse adjetivo.

Abuso armado

Folha de S. Paulo

Casos de truculência policial ganham nova gravidade sob o governo Bolsonaro

À primeira vista, episódios de abuso policial podem parecer não mais que novas e deploráveis manifestações de práticas arraigadas na sociedade brasileira —que vão da abordagem truculenta de cidadãos, em geral pobres e pretos, ao excesso de violência, não raro letal, no cumprimento de deveres do ofício.

Os últimos dias foram pródigos em casos do gênero. No mais dramático deles, dois homens perderam a visão de um dos olhos ao serem atingidos, no sábado (29), por balas de borracha disparadas pela Polícia Militar durante protesto contra Jair Bolsonaro em Recife. As vítimas não participavam do ato.

No mesmo dia, um PM agrediu com um soco na boca um jovem negro em Caieiras (SP), durante uma abordagem; um dia antes, em Cidade Ocidental (GO), um jovem negro que gravava em vídeo suas manobras ciclísticas teve uma arma apontada para si e foi algemado por um policial militar.

Na segunda-feira (31), a PM goiana invocou a Lei de de Segurança Nacional, de 1983, e deteve em Trindade um professor que tinha em seu carro uma faixa que chamava o presidente de genocida.

Como já se percebe a esta altura, a natureza do governo Bolsonaro confere a esses tristes episódios uma nova gravidade —ainda que nem todos eles apresentem uma conexão política óbvia.

O atual chefe de Estado, afinal, baseou sua longa carreira parlamentar na defesa de interesses corporativos de militares e agentes de segurança pública —e também na apologia da brutalidade policial.

No Planalto, tal militância resulta em má política pública: desde reajustes salariais descabidos e cargos na administração aos fardados até tentativas de garantir na lei a impunidade de policiais que matam em serviço. Mas esse nem é o desdobramento mais preocupante.

Bolsonaro estimula, sobretudo, a politização nos quartéis e nas delegacias. Assim fez quando sem maiores sutilezas quis emprestar legitimidade ao criminoso motim de PMs cearenses no ano passado, por ele chamado de greve, ou quando levou o general da ativa Eduardo Pazuello a um palanque.

A profissionais que recebem armas do Estado não é dado o direito a movimentos paredistas e a manifestações políticas, pelos óbvios riscos à segurança dos cidadãos e ao convívio democrático. Ensaios do tipo, mesmo os incipientes, precisam ser rechaçados por superiores hierárquicos, autoridades, líderes políticos e sociedade.

Do presidente da República, infelizmente, não se pode esperar nada além de arruaça. Na ausência de compostura do mandatário maior, cabe às forças responsáveis de defesa e segurança pública zelar pela disciplina e pelo respeito à sua missão constitucional.

Belarus na mira

Folha de S. Paulo

Ocidente tem desafio ao lidar com a ditadura, mais próxima do controle de Putin

Há 15 anos, Vladimir Putin era visto como um líder dinâmico que recolocara a Rússia no caminho da modernidade. Naquele 2005, contudo, o presidente chocou ao dizer que a dissolução da União Soviética em 1991 havia sido a “maior catástrofe geopolítica do século 20”.

Com a aliança militar ocidental, a Otan, devorando antigos satélites comunistas e até os ex-soviéticos Estados Bálticos, Putin reagiu. Emulando seus antecessores históricos, via nos vizinhos aliados ou submissos anteparos estratégicos a possíveis rotas de invasão.

Subjacente a isso, havia o fato de que populações russas étnicas ficaram para trás dos limites da pátria-mãe com o ocaso soviético.

Isso ajuda a entender o atual estágio da agônica crise entre Putin e o Ocidente, focado na Belarus. Última ditadura europeia, o país é um tampão ante as forças da Otan —a Ucrânia também o é, mas de forma desorganizada, imposta por Moscou após a derrubada de um governo favorável a Putin.

Aliado inconfiável, o ditador Aleksandr Lukachenko está sob intensa pressão desde que enfrentou o povo na rua devido a mais uma eleição fraudada, em agosto. A repressão interna intensificou-se, e Putin veio em seu socorro.

Primeiro, porque enfrenta em casa dissenso e não quer ver exemplos que lhe desagradem na vizinhança. Segundo, porque Lukachenko enfraquecido é presa mais fácil para seu desejo de absorver a Belarus em um Estado único com a Rússia, ou algo perto disso.

Só que o ditador deu um passo além ao determinar, na semana passada, que um caça obrigasse um avião comercial irlandês a desviar e pousar em Minsk.

Prendeu um jornalista crítico a seu governo e sua namorada, que estavam no voo, gerando ultraje internacional. A União Europeia determinou sanções e a Otan protestou, mas isso teve pouco impacto.

Após sugerir repreensão ao deixar Lukachenko esperando por uma semana, Putin enfim lhe deu apoio total em encontro pessoal. Isso deverá cimentar a proximidade entre os regimes, o que não é boa notícia para o mundo. Putin não é ainda um ditador, mas sua autocracia evoluiu a um estágio repressivo inaudito.

Sua aliança com Lukachenko é um desafio para o Ocidente, em especial para os países europeus que são dependentes do gás e do petróleo de Moscou. Alienar Putin seria tolo, mas lhe dar livre passagem pode ser ainda mais perigoso.

 

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