- O Estado de S. Paulo
Ao incentivar a anarquia no Exército,
arrisca a própria autoridade
Durou quase meio século a trajetória do
Exército entre eliminar a ameaça de anarquia dentro da instituição e o retorno
à ameaça de anarquia. Nos dois episódios – quando a anarquia foi abortada e
quando ela foi incentivada – a figura central foi o presidente da República.
No primeiro episódio o mandatário era o
general Ernesto Geisel – alguém que, de fato, sabia o que era a
natureza do poder. Destituiu sumariamente em 1977 seu ministro do Exército por
entender que aquele oficial participava de um movimento de insubordinação, que
arrasava qualquer princípio de autoridade, começando pela do presidente.
No segundo episódio o mandatário é o ex-capitão Jair Bolsonaro – alguém que, de fato, nunca soube o que é poder. Incentivou a insubordinação de um general, atacando um pilar fundamental de qualquer Exército, sem entender que está colocando em jogo a própria autoridade. Aliás, exercida de forma incoerente, contraproducente e que está diminuindo depressa.
Talvez um especialista do campo da
psiquiatria explique melhor o desprezo que Bolsonaro tem pelo funcionamento de
instituições, que são complexas estruturas apoiadas tanto em normas e códigos
formais quanto na confiança que se atribui a elas. Um esclarecedor exemplo
desse fato está na maneira como Bolsonaro tratou o Ministério da Saúde, cuja eficácia acabou sendo severamente
comprometida no combate à pandemia não tanto pelo aparelhamento com
incompetentes, mas, sobretudo, pela concorrência a ele criada pelo presidente e
seu círculo informal de aconselhamento integrando charlatães, puxa-sacos e
irresponsáveis dando palpites sobre políticas públicas de saúde.
No caso do Exército, o primitivismo
político de Bolsonaro o faz enxergar como última garantia de poder de fato. Daí
querer dominá-lo. Contudo, até o mais empedernido leninista compreende que o
poder político baseado exclusivamente na força militar não dura para sempre, e
que o exercício do poder abarca convencimento, visão, liderança e articulação
de diversas forças (para não falar das ideias e postulados que as movam). Na
linguagem marxista, o bonapartismo bem-sucedido é o que conhece seus limites.
Mas, para Bonapartes de hospício, é bem
possível que a recusa de Forças Armadas a embarcar em aventuras políticas tenha
revigorado instintos nunca dominados. Bolsonaro é o principal insubordinado em
relação ao Exército, fato mais uma vez demonstrado ao trazer para junto de si
no Planalto um general processado por indisciplina. Está sinalizando a todos
que a transgressão da regra compensa.
Contanto que o transgressor seja alguém de
lealdade irrestrita ao “mito”. Políticos na posição de Bolsonaro que agem mais
por instinto do que por raciocínio são a regra, e não a exceção. Os que se
acham infalíveis, também. Quando instinto, visão e raciocínio combinam com os
fatos da realidade, acabam virando estadistas. São raríssimos, e talvez a
geração no Brasil que foi às urnas pela primeira vez já no século 21 não se
lembre de nenhum. Os atuais passam longe disso.
Geisel abortou a anarquia e, de uma posição
de autoridade, iniciou ainda em 1977 o caminho (admita-se, lento e tortuoso)
que levou à devolução do poder aos civis e à redemocratização. Nesse sentido, é
um marco na linha do tempo que não pode ser ignorado, pelo símbolo e pelas
consequências. Um niilista como Bolsonaro, sem visão política coerente e
desprovido de qualquer princípio que não seja a própria sobrevivência, ao incentivar
a anarquia, também quer colocar um marco na linha do tempo.
Seu símbolo já é claro. Quanto às consequências, dependem do grau de coesão interna e da liderança de instituições como a do Exército. Ou seja, como sobrevivem a Bolsonaro.
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