- Folha de S. Paulo
Procurador-geral da República se fez
autoridade imune a controle, não a crítica
Augusto Aras
resolveu intimidar professor que o chama de omisso. Até
advogados e colegas relatam seu ethos colaboracionista há meses. Mas foi um
trocadilho pouco inspirado que tirou o PGR do prumo. Não quis
se defender em público nem explicar por que a avaliação geral de seu malvisto
desempenho estaria equivocada. Partiu para o processo criminal e pediu cadeia.
Do professor.
Sua petição
faz duas coisas: metade expõe biografia de homem não ordinário,
espécie de “sabe com quem está falando” versão bacharelesca; outra metade
afirma que atribuir omissão a esse homem fora de série não é só crime contra
sua honra, mas notícia falsa.
Aras assegura trabalhar mais que todos os
PGRs anteriores. Sacou número mágico para provar sua vida laboriosa: teria
instaurado 78 “apurações preliminares” contra o governo, cujos arquivamentos,
até aqui, teriam sido todos “acolhidos pelo STF”.
Cuidado com o ilusionismo embutido na
verborragia jurídica. Ele não diz o que faz, nem faz o que diz. Do mesmo jeito
que pode haver autoritarismo disfarçado de democracia, violência pintada de
liberdade, charlatanismo vendido como cura e genocídio como incompetência, pode
haver omissão vestida de ação. De fato, não é por falta de trabalho que se lidera
omissão institucional dessa magnitude.
Há muito suor e grito por trás do nada
fazer contra a política bolsonarista do deixa morrer. O diabo mora nos truques
processuais e retóricos. Nesse caso, nas tais “apurações preliminares”.
Costumam funcionar assim: notícias-crime apresentadas ao PGR podem ser arquivadas sumariamente ou virar apurações preliminares; como arquivamentos sumários vinham se avolumando, atores passaram a apresentar notícia-crime ao STF, que tem o dever de encaminhar ao PGR; essa via alternativa criou constrangimentos adicionais ao PGR.
Nesse caso, Aras costuma instaurar
apurações preliminares, nome que exala impressão de diligência (mas pode não
ser mais que procedimento parado); pode esperar pressão pública se diluir e
arquivá-los a qualquer momento; ao contrário de arquivamentos feitos por
promotores em geral, arquivamentos do PGR não aceitam recurso, apenas “pedido
de reconsideração” para o PGR, que pode ignorar (e tem ignorado). Não há
corregedoria.
Administrar o tempo do arquivamento quando
a pressão dos holofotes se retrai tem sido sua arte. E quando diz que o “STF
acolheu”, insinua que o STF concordou. Contudo, o STF não tem poder de
rejeitar. Assim funciona a divisão de trabalho entre Ministério Público e
Judiciário no sistema acusatório.
Dos 78 procedimentos, há notícia de apenas
três virarem inquéritos: interferência
na Polícia Federal, manifestações por intervenção militar e colapso em
Manaus. Curiosamente, os dois últimos excluíram o protagonista
Bolsonaro da investigação.
Apurações preliminares só se converteram em
inquérito diante de pressão pública incontornável. Podem também ser arquivados
pelo PGR, mas ao menos o deixam mais exposto, pois correm sob supervisão do
STF. Exceto se o STF mudar sua jurisprudência, nem o pastor pode reverter
arquivamento monocrático do PGR.
A operação de
busca e apreensão contra Ricardo Salles foi ordenada pelo STF sem a anuência do
PGR, saída heterodoxa de Alexandre de Moraes. Não precisa de muita
imaginação para decifrar o porquê. Damares Alves, Eduardo Bolsonaro e general
Heleno, beneficiados por arquivamentos preliminares, não tiveram esse azar.
Eram graves as acusações.
Se Aras desse maior transparência aos 78
procedimentos, teríamos discussão informada. Mas como decretou sigilo de
muitos, sob justificativa irrecorrível, sonega a fiscalização pública. Ninguém
sabe o que se passou neles.
Não existe órgão monocrático com esse grau
de irrecorribilidade no sistema de Justiça brasileiro. Nem presidente da
República ou ministro do STF gozam de tamanha blindagem.
A Constituição não se preparou para
neutralizar ação coordenada entre PGR e presidente. Viabilizou golpe perfeito a
partir da combinação de três características do cargo de PGR: livre nomeação
pelo presidente (que pode ignorar lista tríplice); livre de controle
(“irrecorrível”); livre para promoção imediata (sem quarentena) ao STF.
Um par da estirpe de Aras e Bolsonaro,
quando opera em concerto, extrai o máximo dessa arquitetura da omissão e da
cooptação. Esse e outros déficits republicanos da democracia brasileira pedem
reforma constitucional urgente.
Aras pode entender apurações preliminares,
destinadas à gaveta e ao arquivo, como prova de séria dedicação à sua função.
Só não pode impedir que tantos observadores, e até ministros do STF, enxerguem
coisa pior.
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