quinta-feira, 3 de junho de 2021

Everardo Maciel* - O paraíso perdido

- O Estado de S. Paulo

Tomo emprestado o título da celebrada obra do poeta inglês John Milton para tratar da prosaica, mas não irrelevante, erosão das bases tributárias, a principal causa da crescente desigualdade entre países e pessoas.

Essa patologia tributária consiste no dissimulado deslocamento de lucros de grandes multinacionais e fundos de investimentos para países e dependências indulgentemente denominados paraísos fiscais, onde se recolhe pouco ou nenhum imposto e tão somente “alugam” suas jurisdições mediante pagamento de módicas taxas. 

Há uma vasta coleção de impactantes estatísticas que revelam a desproporcional dimensão dessa patologia. Destaco duas delas: Ugland House, modesto edifício de 5 pisos nas Ilhas Cayman, abriga as improváveis sedes de 26 mil empresas, o que foi considerado pelo então presidente Obama como o maior escândalo fiscal contemporâneo; estudo do FMI, em 2019, mostrava que os investimentos estrangeiros “diretos” no minúsculo Grão-Ducado de Luxemburgo alcançavam um montante de US$ 4 trilhões, o que corresponde a inacreditáveis 10% do total global.

Desde 2013, quando o tema foi suscitado em reunião do G-20, na Rússia, incumbiu-se a OCDE de elaborar um ambicioso projeto denominado Beps (Base Erosion and Profit Shifting), visando a reverter essa anomalia tributária, que debilita sobretudo a capacidade fiscal dos países não desenvolvidos. 

A despeito dos laboriosos estudos realizados e dos vigorosos discursos pronunciados, entretanto, são pífios os resultados daquela iniciativa.

Talvez, em razão da escassez de recursos para enfrentar as crises associadas à pandemia de covid-19, o tema passou a despertar uma especial atenção.

Antes notório empecilho a todas as iniciativas tendentes a constranger os paraísos fiscais, os Estados Unidos, desde o início do governo Biden, mudaram de posição, dando razão ao que dissera Winston Churchill: “Os Estados Unidos farão a coisa certa, depois de tentarem todo o resto”.

Pretende-se, em reunião do G-7 marcada esta semana, firmar acordo para estabelecer uma alíquota efetiva mínima de 15% do Imposto de Renda das empresas, país a país, o que seria um passo vigoroso para expungir a hipocrisia dos paraísos fiscais. Caso prospere, a proposta será submetida ao G-20, grupo de países do qual o Brasil participa, em reunião prevista para julho próximo. 

São notícias auspiciosas que convergem com a recente decisão da União Europeia (UE) obrigando as grandes multinacionais (receita global, por 2 anos consecutivos, maior que 750 milhões de euros), que operam no bloco, a divulgarem a relação de países onde realizam lucros e recolhem tributos. 

Ainda que essa publicidade esteja restrita aos países que integram as questionáveis listas de paraísos fiscais, aprovadas pela UE em 2018, há que reconhecer que é a primeira iniciativa, tomada no âmbito do bloco europeu, para enfrentar o que certamente é a maior distorção da história da tributação e reduz outras distorções a meras travessuras infantis. 

O mais curioso é que, contrastando com nossa reconhecida baixa autoestima, o Brasil, no contexto de uma ampla reformulação da legislação do Imposto de Renda das Pessoas jurídicas (IRPJ), foi o primeiro país do mundo, por força da Lei nº. 9.430, de 1996, a definir objetivamente paraísos fiscais e fixar contramedidas compensatórias aos negócios com essas jurisdições. 

Essa reforma, que incluiu, entre outras medidas, a eliminação da dedutibilidade da correção monetária do patrimônio líquido, a adoção dos juros remuneratórios do capital próprio e a isenção na distribuição de resultados, resultou, entre 1996 e 2002, em aumento real de 117% na arrecadação do IRPJ e elevação de 50% em sua participação no PIB.

Especula-se, agora, sobre a extinção de algumas dessas medidas. Seguramente, será a festa da evasão fiscal e do planejamento tributário abusivo. Por consequência, haverá impacto negativo nas receitas tributárias, em circunstâncias de delicado equilíbrio fiscal. Não corre o risco de dar certo, como diria Roberto Campos.

*CONSULTOR TRIBUTÁRIO, FOI SECRETÁRIO DA RECEITA FEDERAL (1995-2002)

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