- O Estado de S. Paulo
A oposição ao governo é plural, integrada
por pessoas e correntes múltiplas
Em editorial publicado anteontem, o Estado deixou
patente a avaliação positiva que faz das passeatas contra o presidente da
República, que tomaram as ruas de diversas cidades no sábado passado. O texto
começa por afirmar que “foram muito significativas as manifestações”. Na
avaliação deste diário, “a realização, em si mesma, do protesto” repõe o
equilíbrio de forças: “O embate entre o bolsonarismo e o antibolsonarismo, que
antes estava restrito ao universo das redes sociais, a partir de agora poderá
ser travado ao ar livre, com ou sem vírus.”. O argumento prossegue atestando
que, “para muita gente, o risco da continuidade do governo de Bolsonaro é maior
do que o perigo representado pelo coronavírus, razão pela qual valeria a pena
arriscar-se em manifestações de rua se isso causar problemas para o
presidente”.
O editorial nos chega em boa hora, quando ainda pairam dúvidas sobre a posição das principais redações do País sobre as manifestações. Há quem tente rotulá-las como um movimento de esquerda. Outros resmungam que tudo não passa de uma grita radical, extremista, em defesa de corruptos. O Estado discorda dessas visões redutoras: “Seria um erro entender que o antibolsonarismo seja uma exclusividade da esquerda. (...) É lícito supor que, se não fossem as reticências sanitárias motivadas pela pandemia, muito mais cidadãos, de diversos credos políticos, poderiam se animar a participar de manifestações contra o presidente”.
Nada mais razoável. O que se vai desenhando
na conjuntura nacional é uma demarcação entre dois polos, sem dúvidas, mas não
nos encontramos numa polarização simétrica, como muitos ainda insistem em
dizer. Não se trata de um enfrentamento entre dois opostos equivalentes, uma
direita furibunda contra uma esquerda raivosa. O País não está dividido entre
duas falanges iguais, com sinais invertidos. Não é isso. A bifurcação é de
outra ordem: os dois lados são substancialmente diferentes um do outro.
Na extrema direita movem-se as forças que
desrespeitam direitos fundamentais, elogiam torturadores, clamam por um golpe
militar e insultam a imprensa com o propósito de silenciá-la – na parada de
motocicletas bolsonaristas no Rio de Janeiro, no dia 23 de maio, o repórter da
CNN Pedro Duran foi hostilizado aos gritos de “CNN lixo” e precisou da proteção
policial para não sofrer agressões físicas. No outro campo, o que tomou as ruas
do País no sábado, comparecem aqueles que têm compromisso com o Estado Democrático
de Direito e valorizam o jornalismo profissional, representando ideários
diversos, de socialistas a liberais. A oposição ao governo é plural, integrada
por pessoas e correntes múltiplas.
O cenário bipartido explicita o dilema real
da sociedade. Esse dilema não se dá entre duas propostas amalucadas, mas entre
alternativas mais definitivas. Teremos de escolher entre as liberdades e a
selvageria, os direitos humanos e a violência, a saúde e a doença, a urbanidade
e o cangaço, a razão e o fanatismo, a democracia e a ditadura, a vida e a
morte. Para escolher certo precisamos contar com o pensamento. O juízo de fato
e o juízo de valor apontam para o mesmo norte. A análise objetiva da realidade
conclui pela democracia – ou alguém em sã consciência vai preferir o
agravamento do Estado de exceção? Do mesmo modo, os princípios éticos preferem
a normalidade democrática, pois não há virtude na tirania.
Nesta hora, a voz das redações que ainda
sabem exercer os dois juízos (são poucas) não pode faltar. É verdade que,
infelizmente, essa voz fraquejou, desde o início da cobertura eleitoral em
2018, e não soube dar os nomes devidos às coisas e aos agentes políticos. O
candidato que saiu vitorioso das eleições conseguiu posar de “candidato
normal”, embora proclamasse devoção ao golpe de 1964 e à tortura. Tendo obtido
seu registro na Justiça Eleitoral, passou a expressar, aos berros, a negação do
pacto democrático que se estabeleceu no Brasil a partir de 1985. Chegou ao
poder pela via democrática e, instalado no poder, vem demolindo por dentro o
edifício da democracia.
Diante disso, o campo democrático decidiu
ir às ruas. Até que enfim. Se nada for feito, o sujeito que não foi um
candidato normal e não é um presidente normal prosseguirá com seu projeto
anormal. E agora? Como os jornais vão reportar esse dilema? É legítimo torcer
os fatos para fazer parecer que as forças de esquerda são um mero espelhamento
em negativo da extrema direita? É saudável esquecer que os governos de centro
ou moderadamente de esquerda, apesar dos tenebrosos escândalos de corrupção,
fortaleceram as instituições, especialmente as encarregadas de combater a
corrupção? Se até o ex-juiz Sergio Moro reconheceu esse fato, por que não
narrá-lo e explicá-lo a contento? Não hesitemos mais: a pior corrupção é a
corrosão intencional do Estado que vem sendo implementada pelas autoridades de
turno, para o êxtase de suas milícias digitais (e nem tão digitais assim).
Que o jornalismo crítico acorde juntamente
com as ruas. Sem demora. Se a barbárie vencer, a primeira vítima será, como já
vem sendo, a imprensa.
*Jornalista, é professor da ECA-USP
Nenhum comentário:
Postar um comentário