Revista Veja
Bolsonaro adoraria comandar um Brasil
institucionalmente tão frágil que lhe permitisse materializar devaneios
autoritários. Mas não é assim que a banda toca
Reza o catastrofismo engajado que a
democracia brasileira se encontra em via de extinção. Por essa cartilha, o
golpe de Estado está em marcha e apenas os ingênuos não percebem. O mesmo
manual ensina tratar-se de teoria vã a constatação de que as instituições
funcionam.
Felizmente, a realidade desmente tal
conjunto de ideias, cujos autores têm razão num ponto: o presidente Jair
Bolsonaro adoraria estar no comando de um Brasil institucionalmente tão frágil
que lhe permitisse materializar seus devaneios autoritários, mas não é assim
que a banda vem tocando.
Se as tentativas presidenciais obtiveram
êxitos pontuais — mas nem por isso menos importantes —, a maioria das
investidas foi barrada ou rechaçada. E aqui falamos das instituições,
considerando o conjunto, não atitudes individuais: Supremo Tribunal Federal,
Congresso Nacional, Tribunal de Contas da União, Ministério Público, Polícia
Federal, imprensa profissional e, mãe de todas, a opinião pública.
Há muita espuma no que se propõe o
presidente. Não é fácil dissipar o fervo eivado de artificialismo devido ao seu
caráter tóxico, mas não é impossível. O exemplo mais recente de espuma tóxica
produzida pelo presidente e que vem sendo debelada a golpes de
institucionalidade é a ameaça de arruaça pós-eleitoral travestida de
preocupação com a confiabilidade do voto eletrônico.
Não há notícia de fraudes ocorridas desde a
adoção dessa ferramenta de votação. Na história recente houve três de
repercussão nacional: em 1982, 1990 e 1994. Todas da era da cédula de papel.
Impresso, “auditável”, confiável, seja lá o nome que se dê ao tipo de voto defendido por Bolsonaro e companhia, a ideia não é atuar em prol da confiança no resultado da votação. A intenção é disseminar a desconfiança no sistema a fim de fazer da suspeita de fraudes um antídoto para eventual derrota.
Pois muito bem. Tanto o Tribunal Superior
Eleitoral — nas figuras do atual e do futuro presidente, Luís Roberto Barroso e
Alexandre de Moraes, respectivamente — quanto o STF e um conjunto significativo
de partidos e lideranças políticas já desvendaram a tramoia.
“A pregação de arruaça pós-eleitoral encontra
barreira nos poderes, mas falta reação da sociedade”
Poderiam ter relegado o vaticínio sobre a
ocorrência de “comoção social”, se não houver voto impresso, ao campo da vã
perturbação mental. Mas os acontecimentos de 2018 para cá já mostraram que não
se deve menosprezar (nem temer) o potencial de risco do fator Bolsonaro. Donde,
organizou-se a reação.
No âmbito do Judiciário, Barroso e Moraes
dedicam-se a uma cruzada constante para explicar à sociedade e aos
congressistas que terão de decidir se aprovam ou desaprovam emenda
constitucional para impressão dos votos, o benefício das urnas eletrônicas e os
malefícios da mudança do sistema. No STF o tema já foi rejeitado duas vezes, em
2018 e 2020.
O norte político foi dado na recente
manifestação de onze partidos, entre os quais três integrantes da base
governista (PP, PL e Republicanos), contrários à PEC em tramitação na Câmara
dos Deputados. E para que não restasse a menor dúvida sobre a clareza de
propósito, as legendas trocaram seus representantes na comissão especial que
examina o assunto, a fim de alterar a correlação de forças e matar no
nascedouro a proposta que vinha avançando sob patrocínio da tropa bolsonarista.
O jogo dentro do Congresso está feito. No
Supremo e na Justiça Eleitoral as barreiras estão postas. Resta convencer a
sociedade para tornar a tese da confiabilidade de voto tão minoritária que o
país consiga se precaver do que vem adiante. Sim, porque Jair Bolsonaro não vai
desistir. Seguirá no confronto alegando a existência de um complô nas altas
esferas da República para lhe subtrair a reeleição.
Alimentará para além de qualquer limite a
impressão do forrobodó inevitável. Busca produzir desde já um terceiro turno
antecipado. Faz isso com antecedência para dar tempo de repetir a mentira sobre
a urdidura da fraude tantas vezes e com tal assertividade que um expressivo
contingente de brasileiros passe a ver a lorota como verdade.
Nisso, seria fundamental a participação dos pretendentes à Presidência da República, venham eles a ter ou não confirmadas suas candidaturas, pois serão os principais personagens da cena política de 2022, à qual Jair Bolsonaro procura atribuir a faculdade de um ato de má-fé, com o intuito de semear a desordem e colher daí o retrocesso.
Publicado em VEJA de 14 de julho de 2021, edição nº 2746
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