Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Pais e mães que matam os filhos não são
unicamente assassinos: são filhos do limbo e da escuridão porque lhes falta o
essencial da condição humana
Nos últimos anos, um número crescentemente
assustador de casos de violência contra crianças, no Brasil, chega ao
conhecimento da mídia e do público unicamente porque são aqueles
caracteristicamente extremos e socialmente mais anômalos do que em si mesma é a
violência contra imaturos e indefesos. Chegam quando a sociedade reage com
bestialidade equivalente e por meio dela ganham visibilidade.
Não são, propriamente, poucos os
assassinatos em família, de crianças com menos de dez anos de idade, muitas
vezes com menos de cinco. Pais e padrastos ou mães, identificados por vizinhos
e parentes, como autores de homicídios, na sequência de tortura e de agressão
física descabida.
Casos em que o agressor e os cúmplices, por
ação ou omissão, que muitas vezes os há, dão claros indícios de que não têm a
menor consciência da peculiar alteridade entre crianças e adultos. São
agressões covardes porque nelas o agressor sabe que a vítima é física e
afetivamente incapaz.
Essas agressões a crianças são uma traição
à paternidade e à maternidade. Não só no desconhecimento à condição humana da
vítima. É nos filhos que os pais se confirmam como gente, como seres humanos.
Gente quer dizer o humano completo, inteiro, o que gera descendentes assim como
foi gerado pelos ascendentes. Os que não estão sozinhos no mundo, senhores de
si mesmos porque deles são senhores os outros que neles há.
Pais e mães que matam os filhos não são unicamente assassinos. São órfãos, filhos do limbo e da escuridão porque lhes falta o essencial da condição humana, o que vai muito além da procriação carnal. Falta-lhes a competência existencial para reconhecerem-se na inocência criativa dos filhos.
Um dos casos mais recentes foi o do pai que
bateu violentamente no filho pequeno porque o menino cometera erros na lição de
casa. A última notícia foi a de que a criança tivera morte cerebral. Outro
caso, bastante conhecido, foi o do garoto torturado reiteradamente pelo
padrasto, de que decorreu a morte do pequeno horas depois. Outro, ainda, o da
madrasta, no Sul, que com cumplicidade de uma amiga anestesiou o enteado e o
matou em seguida.
Nesses e em muitos outros casos, mães ou
pais biológicos são cúmplices desses homicídios porque silenciaram em face da
violência notória e crescente, dentro de casa.
Mais frequentes, ainda, são os casos de
estupros de crianças e até bebês por padrastos ou tios ou até pelo próprio pai.
Um dos casos trágicos foi o do pai, cuja mulher, viciada em drogas, abandonou a
família e deixou com ele a filhinha muito pequena. Quando ela chegou aos cinco
anos de idade, o pai a estuprou. Tem havido casos mesmo de bebês estuprados.
Por alguém da família, não raro pai ou padrasto. Outros casos são de estupros
continuados. Num extremo, o padrasto que ejaculava na boca de um bebê de pouco
mais de um ano.
Em todos os casos, de homicídio e de
estupro, é frequente que a consciência pública da violência e da violação de
crianças se expresse no linchamento do seu autor. A sociedade tem sua própria
concepção de senso comum da extrema gravidade da indiferença de alguém em
relação ao incesto. O tabu do incesto é universal.
A relação incestuosa expressa a
animalização do indivíduo que a pratica e implica a sua reclassificação social
como alguém que está aquém da condição humana. Nesse sentido, quem lincha não
lincha como pessoa nem como indivíduo nem como consciência individual, mas como
corpo coletivo, como sujeito coletivo, como sociedade.
Sociedade e indivíduo não se confundem
necessariamente. A sociedade é um organismo invisível que ganha visibilidade
quando o seu todo é violentado pelos indivíduos vazios de humanidade,
interiormente destroçados, que, por isso, representam um perigo mortal para os
seres humanos.
Um dos mais significativos indícios dessa
característica da nossa consciência social é o linchamento na prisão dos
autores dessas violações e dessa violência contra crianças.
Nesse caso, os linchadores, violadores da
lei e das regras da civilização nos crimes que praticaram e que resultaram em
sua prisão e condenação, não aceitam dividir a cela com autores de crimes
contra crianças. Não querem ser igualados com eles. Para eles há um limite que
separa o crime da bestialidade.
Esse é um dado significativo sobre os
valores inscritos na consciência social do encarcerado. Quando se pensa numa
justiça restitutiva como fundamento da pena, esse aspecto antropológico da
consciência do punido deveria ser uma referência na definição legal do que é
entre nós crime e castigo.
A sociedade brasileira, de muitos modos,
está morrendo. As sociedades morrem quando os inocentes gritam e ninguém ouve.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “No Limiar da Noite” (Ateliê, 2021).
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