sexta-feira, 9 de julho de 2021

José de Souza Martins* - O Brasil órfão e desvalido

Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Pais e mães que matam os filhos não são unicamente assassinos: são filhos do limbo e da escuridão porque lhes falta o essencial da condição humana

Nos últimos anos, um número crescentemente assustador de casos de violência contra crianças, no Brasil, chega ao conhecimento da mídia e do público unicamente porque são aqueles caracteristicamente extremos e socialmente mais anômalos do que em si mesma é a violência contra imaturos e indefesos. Chegam quando a sociedade reage com bestialidade equivalente e por meio dela ganham visibilidade.

Não são, propriamente, poucos os assassinatos em família, de crianças com menos de dez anos de idade, muitas vezes com menos de cinco. Pais e padrastos ou mães, identificados por vizinhos e parentes, como autores de homicídios, na sequência de tortura e de agressão física descabida.

Casos em que o agressor e os cúmplices, por ação ou omissão, que muitas vezes os há, dão claros indícios de que não têm a menor consciência da peculiar alteridade entre crianças e adultos. São agressões covardes porque nelas o agressor sabe que a vítima é física e afetivamente incapaz.

Essas agressões a crianças são uma traição à paternidade e à maternidade. Não só no desconhecimento à condição humana da vítima. É nos filhos que os pais se confirmam como gente, como seres humanos. Gente quer dizer o humano completo, inteiro, o que gera descendentes assim como foi gerado pelos ascendentes. Os que não estão sozinhos no mundo, senhores de si mesmos porque deles são senhores os outros que neles há.

Pais e mães que matam os filhos não são unicamente assassinos. São órfãos, filhos do limbo e da escuridão porque lhes falta o essencial da condição humana, o que vai muito além da procriação carnal. Falta-lhes a competência existencial para reconhecerem-se na inocência criativa dos filhos.

Um dos casos mais recentes foi o do pai que bateu violentamente no filho pequeno porque o menino cometera erros na lição de casa. A última notícia foi a de que a criança tivera morte cerebral. Outro caso, bastante conhecido, foi o do garoto torturado reiteradamente pelo padrasto, de que decorreu a morte do pequeno horas depois. Outro, ainda, o da madrasta, no Sul, que com cumplicidade de uma amiga anestesiou o enteado e o matou em seguida.

Nesses e em muitos outros casos, mães ou pais biológicos são cúmplices desses homicídios porque silenciaram em face da violência notória e crescente, dentro de casa.

Mais frequentes, ainda, são os casos de estupros de crianças e até bebês por padrastos ou tios ou até pelo próprio pai. Um dos casos trágicos foi o do pai, cuja mulher, viciada em drogas, abandonou a família e deixou com ele a filhinha muito pequena. Quando ela chegou aos cinco anos de idade, o pai a estuprou. Tem havido casos mesmo de bebês estuprados. Por alguém da família, não raro pai ou padrasto. Outros casos são de estupros continuados. Num extremo, o padrasto que ejaculava na boca de um bebê de pouco mais de um ano.

Em todos os casos, de homicídio e de estupro, é frequente que a consciência pública da violência e da violação de crianças se expresse no linchamento do seu autor. A sociedade tem sua própria concepção de senso comum da extrema gravidade da indiferença de alguém em relação ao incesto. O tabu do incesto é universal.

A relação incestuosa expressa a animalização do indivíduo que a pratica e implica a sua reclassificação social como alguém que está aquém da condição humana. Nesse sentido, quem lincha não lincha como pessoa nem como indivíduo nem como consciência individual, mas como corpo coletivo, como sujeito coletivo, como sociedade.

Sociedade e indivíduo não se confundem necessariamente. A sociedade é um organismo invisível que ganha visibilidade quando o seu todo é violentado pelos indivíduos vazios de humanidade, interiormente destroçados, que, por isso, representam um perigo mortal para os seres humanos.

Um dos mais significativos indícios dessa característica da nossa consciência social é o linchamento na prisão dos autores dessas violações e dessa violência contra crianças.

Nesse caso, os linchadores, violadores da lei e das regras da civilização nos crimes que praticaram e que resultaram em sua prisão e condenação, não aceitam dividir a cela com autores de crimes contra crianças. Não querem ser igualados com eles. Para eles há um limite que separa o crime da bestialidade.

Esse é um dado significativo sobre os valores inscritos na consciência social do encarcerado. Quando se pensa numa justiça restitutiva como fundamento da pena, esse aspecto antropológico da consciência do punido deveria ser uma referência na definição legal do que é entre nós crime e castigo.

A sociedade brasileira, de muitos modos, está morrendo. As sociedades morrem quando os inocentes gritam e ninguém ouve.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “No Limiar da Noite” (Ateliê, 2021).

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