O Estado de S. Paulo
O governo quer o dinheiro, e não a
expertise das entidades do Sistema S
Mais uma vez trava-se um embate entre o
governo e o chamado Sistema S. O governo quer usar 30% dos recursos das suas
entidades (R$ 6 bilhões anuais) para pagar bolsas de estudo para jovens a serem
treinados em serviço, nas empresas. As entidades querem ajudar o governo,
oferecendo o que elas vêm fazendo ao longo de 80 anos: transmitir conhecimentos
e valores humanos. Mas o governo quer o dinheiro, e não a expertise. O que
dizer?
O projeto do governo tem mérito. O domínio de uma profissão é essencial para o primeiro emprego. Mas treinar em serviço é tarefa complexa. A simples transferência de recursos não garante a transferência de habilidades. Além da boa vontade, os gestores precisam saber como ensinar e como avaliar os jovens – tarefas que as entidades do Sistema S conhecem de cor e salteado. Por isso, penso que a parceria mais produtiva seria a de atrelar aquelas entidades em treinamentos presenciais e online para os próprios jovens, e apoiar didaticamente os gestores, ajustando os treinamentos à realidade de cada momento, porque o alvo é móvel.
Além de não garantir o sucesso do projeto
governamental, a perda de R$ 6 bilhões anuais complicará severamente a vida
daquelas entidades na sua missão de formar capital humano em grande escala. No
conceito antigo, o capital humano se referia apenas ao resultado do número de
anos cursados nas escolas. Hoje, o Índice de Capital Humano, criado pelo Banco Mundial,
inclui educação, saúde, cultura, esporte e outras atividades que contam muito
para a formação das pessoas e para a sua produtividade. O Brasil está
mal nesta foto: ocupa o 81.º lugar em 157 países analisados, atrás de Sri Lanka, Irã, Azerbaijão, Malásia e
outras nações pouco desenvolvidas.
Ao longo do tempo, as entidades do Sistema
S aprenderam a trabalhar os seres humanos desde o nascimento até as idades
avançadas por meio de programas de pré-natal, puericultura, alimentação,
esporte, lazer, cultura e, sobretudo, ensino profissional em vários níveis.
Para tanto, utilizam uma enorme rede nacional de centros de promoção social e
escolas profissionais, ancorados em pesados investimentos em equipamentos
físicos e recursos humanos, atendendo milhões de famílias. Comprometer esse
trabalho seria conspirar contra o Brasil que está dando certo. É pouco provável
que a formação do capital humano seria alcançada por um treinamento em serviço
sem orientação. Para aprender, não basta receber uma bolsa. Mais importante é
receber uma educação de boa qualidade.
O que diferencia os bons sistemas de
formação profissional no mundo são a “pontaria” sobre o que ensinar, a didática
ajustada e os mecanismos rápidos de correção de rumos. O ensino profissional é
complexo: demanda mestres experientes e devotados, material didático adequado,
muita disciplina, equipamentos atualizados e o cultivo de valores sociais que
conduzem à ética do trabalho.
Na minha longa carreira de pesquisador
visitei centenas de escolas do Senai e Senac.
Nunca vi um aluno terminar o dia sem antes arrumar a bancada e deixar tudo em
ordem. Nunca vi um aluno ofendendo professores ou funcionários. Nunca vi uma parede
pichada ou um banheiro sem manutenção. Nunca vi um gramado abandonado. Nunca vi
desprezo pelo trabalho. Nunca vi promoção sem mérito. Zelo, disciplina,
respeito e amor pelo bem feito são valores que contam muito na formação e na
empregabilidade dos jovens. Centenas de pesquisas comprovam isso. Convém
repensar o assunto.
*Professor de Relações do Trabalho da Universidade de São Paulo, membro da Academia Paulista de Letras, é presidente do Conselho de Emprego e Relações do Trabalho da Fecomercio-SP
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