Folha de S. Paulo
A sua está despencando; a de Bolsonaro
nunca encontrou limites
Todo autocrata enche a boca para falar de
liberdade. O autocrata brasileiro chama juiz de imbecil e pedófilo em nome da
liberdade; ameaça fechar tribunal e encher
boca de jornalista de porrada em nome da liberdade; aponta fraude sem
provas nas eleições que venceu e impõe condições às próximas em nome da
liberdade; sugere a você morrer asfixiado em nome da sua liberdade “post
mortem”. “Ela não é dissociada do oxigênio que respiramos”, já disse.
Quando Bolsonaro perguntou esses dias “cadê
nossa liberdade?”, ele se referia à liberdade de divulgar notícia falsa.
Afinal, se o gabinete
do ódio, que chama de “gabinete da liberdade”, sofre tímidas restrições de
plataformas privadas para desinformar sobre a pandemia e manipular nossas
emoções políticas, restava só ensaiar uma canetada contra as redes.
A liberdade econômica, princesa de Paulo Guedes,
encontra seus limites no fígado de Bolsonaro e no bolso do centrão. E
vice-versa. Serve para uma Havan, não para qualquer Facebook.
Apesar da insistência dos profetas da democracia “risco zero”, que tentam nos tranquilizar e recalibram seus detectores de “instituições funcionando” para que os gritos das ruas e os sussurros dos generais sejam ignorados, o Brasil lidera a terceira onda de autocratização no mundo. Assim concluiu o relatório “Autocratização se torna viral”, produzido pelo centro de pesquisa V-Dem (Varieties of Democracy).
Esse processo segue passos meio
padronizados: governos
atacam a mídia, a ciência e a sociedade civil; constroem inimigos por discurso
de ódio e desinformação, reprimem a divergência e atiçam a incivilidade; aos
poucos, vão eviscerando a capacidade estatal de fiscalizar o poder e
responsabilizar infratores.
Alimentam
desconfiança no voto e terminam pela transformação constitucional do país. Não
deixam de realizar eleições, mas combatem as pré-condições de eleições livres e
justas. Aos poucos a democracia eleitoral dá lugar à chamada autocracia
eleitoral, ou autoritarismo competitivo. Isso se um golpe à antiga não encerrar
o processo antes, mas tem sido recurso ultrapassado e dispensável.
Para dimensionar a corrosão do espaço
cívico com menos abstração ou impressionismo, vale olhar para o conjunto de
casos de agressão ou inviabilização arbitrária das liberdades. O repertório
tático de um governo autoritário conjuga asfixia financeira, estigmatização e
intimidação pública e privada e, se preciso for, repressão. Tudo isso por meios
mais ou menos explícitos, mais ou menos formais.
No campo da liberdade
de expressão, o relatório da organização Artigo 19 sobre 2019-2020 descreve
como e por que, no espaço de poucos anos, o Brasil foi de país “aberto” para
país “restrito”. Estudos assim, contudo, não conseguem mensurar o quanto
práticas de intimidação e o acosso jurídico de alvos específicos, ao
despertarem medo pelo exemplo, desencadeiam um cala-boca geral.
O índice mundial de liberdade de imprensa,
calculado pela organização Repórteres Sem Fronteiras, mostra que o país
declinou e ingressou na categoria vermelha, classificada como “difícil”, a
segunda pior numa escala de cinco.
A liberdade científica e acadêmica segue o
mesmo padrão. No índice global de liberdade acadêmica, construído pelos centros
V-Dem e Global Public Policy Institute, o Brasil caiu para categoria C numa
escala de A a D. Na América Latina, estamos melhor que a Venezuela, pior que
todos os outros. Se você acha que o colapso digital do CNPq, nesta semana, tem
a ver com isso, você acertou.
Não temos ainda um índice de liberdade
artística para oferecer. Mas quem acompanha a vida cultural do país sabe a
gravidade do momento: exposição de fotos sobre a construção democrática do
país, em Juiz de Fora, foi suspensa porque o juiz viu nela “engenhos de
publicidade”; secretaria de cultura inviabiliza apoio ao Festival de Jazz do
Capão, com parecer extravagante que define a finalidade da música (“glória de
Deus e a renovação da alma”).
Se quiser discutir liberdade de informação,
acompanhe a redução da transparência oficial e as novas práticas de sigilo,
acompanhadas pela máquina de desinformação. Se quiser falar de liberdade
religiosa, olhe não apenas para os numerosos ataques de intolerância, mas ao
centrão teocrático em Brasília.
Cadê nossa liberdade? Está aí. Vai reclamar?
*Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt.
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