O Globo
Já virou padrão: toda vez que é pego em
contradição com o que ele mesmo defendia em 2018, Jair Bolsonaro diz que não
teve escolha. Do contrário, “viriam para cima” dele. Foi o argumento que o
presidente da República tirou da cartola ao explicar a seus seguidores, no
cercadinho do Alvorada, o recuo sobre o fundo eleitoral de 2022, aprovado pelo
Congresso há duas semanas — que pode chegar a R$ 5,7 bilhões.
Depois de reagir indignado ao valor, que
classificou como “enorme”, uma “casca de banana”, uma “jabuticaba”, Bolsonaro
surgiu nesta segunda-feira no cercadinho bem mais manso e circunspecto. “Vou
deixar claro (sic) uma
coisa: vai ser vetado o excesso do que a lei garante, tá? É de quase
4 bilhões o fundo. O extra de 2 bilhões vai ser vetado. Se eu vetar o que está
na lei, eu tô incurso na lei de responsabilidade.”
Todo mundo sabe que o presidente é pródigo
em espalhar desinformação, mas essa aí constaria fácil numa coletânea de
melhores momentos. Primeiro porque, hoje, não há nenhuma lei dizendo que o
fundo eleitoral para 2022 tem de ser de R$ 4 bilhões.
Nos últimos dias, consultei especialistas em legislação eleitoral e deputados de vários partidos. Não encontrei ninguém que soubesse apontar de que lei o presidente Bolsonaro está falando. Portanto, se não há lei, evidentemente não há excesso de R$ 2 bilhões.
Segundo os limites estabelecidos pelas
fórmulas em vigor hoje, o valor obrigatório para o fundo eleitoral é de R$ 800
milhões (reembolso estatal às redes de TV pelo horário eleitoral), mais uma
porcentagem do total destinado às emendas de bancada, decidida a cada ano
eleitoral.
No último dia 15, os parlamentares
decidiram que a fatia das emendas a ser destinada ao fundo eleitoral de 2022
deverá corresponder a 25% do orçamento de dois anos da Justiça Eleitoral.
Somando o reembolso das TVs com essa cota, mais correção pela inflação, chega-se a R$ 5,7 bilhões para 2022. Em 2020, o total foi de R$ 2
bilhões.
Sejam esses critérios casca de banana,
jabuticaba ou pequi roído, eles foram aprovados com a participação e o aval de
todos os líderes do governo no Congresso.
Apesar do que disse no Alvorada, o que
Bolsonaro tenta agora, nos bastidores, é encontrar uma maneira de vetar essa
forma de cálculo, mantendo sua narrativa, e de, ainda assim, contentar os
parlamentares com um fundo eleitoral de R$ 4 bilhões. É disso que se trata.
Se quisesse, o presidente poderia fazer
isso de modo transparente, liderando um debate adulto com a sociedade
brasileira sobre de onde deve vir o dinheiro que financia as campanhas, quanto
os cidadãos estão dispostos a pagar em forma de impostos e quanto aceitam que
venha de outras fontes, como empresas e pessoas físicas.
Num momento de tantos ataques à democracia,
em que o próprio presidente da República dissemina desconfianças sobre a lisura
do processo eleitoral, uma discussão aberta, civilizada e consequente sobre
financiamento de campanha seria muito bem-vinda.
Mas é claro que Bolsonaro não está
interessado em nada disso. Seu único objetivo é continuar fingindo que o país é
um grande cercadinho onde ele pode disseminar suas confusões nada aleatórias,
enquanto tenta garantir sua sobrevivência política.
É só por isso que, às claras, ele insiste
em dizer que as urnas eletrônicas não são confiáveis, mesmo sem apresentar
prova alguma — mas, por debaixo dos panos, avaliza acordos que multiplicam o
orçamento dessas mesmas eleições, elevando o fundo eleitoral a valores recordes.
A verdade que nem mesmo o cercadinho é
capaz de esconder é que, depois de passar os primeiros meses de mandato
enchendo a boca para dizer “sou eu que mando, o presidente sou eu”, Bolsonaro gasta cada vez mais tempo
justificando decisões impopulares com o “se eu não fizer, vão vir para cima de
mim”.
Tudo o que ele tem para brandir a seus
seguidores é o mito do herói ameaçado pelos inimigos. Na segunda-feira, ele
encerrou a explicação sobre o fundo eleitoral com o apelo: “Espero não apanhar
do pessoal aí, como sempre, né? Porque, se começar a bater muito, vai ter de
escolher no segundo turno Lula ou Ciro”.
Por enquanto, esse tipo de ameaça ainda
funciona para uma parcela dos eleitores. Mas nenhum fingimento dura para
sempre. Quanto mais o tempo passa, mais fica claro que o mandatário que hoje se
expõe ao cercadinho é um leão sem dentes, domesticado pelos profissionais — da
política, do lobby, dos negócios.
Nesse contexto, o “excesso” do fundo
eleitoral é só um detalhe.
Nenhum comentário:
Postar um comentário