terça-feira, 10 de agosto de 2021

Carlos Andreazza - Sócios e dilapidadores

O Globo

Senhor dos apertos sobre o botão amarelo, instrumento para a falsa equivalência que distribui em pesos iguais os ataques autocráticos permanentes de um e as parcas reações institucionais de outros, Arthur Lira faz discurso de chefe de poder moderador da República (cargo pelo qual terá de competir com Braga Netto e a leitura demolidora que generais fazem da Constituição), mas sua intenção é defender o equilíbrio republicano.

Passa o trator no Parlamento, esvazia ferramentas regimentais de mobilização das minorias legislativas, mas sua intenção é ouvir a Câmara, “a casa mais democrática, onde o voto livre reverbera sempre a vontade popular” — diz aquele que instituiu a blitz como modo de impor pautas, o parecer divulgado na calada da noite e a ser votado no dia seguinte, a toque de caixa. A própria abolição do debate — o debate, a própria essência da democracia representativa. É contra o que investe o atropelador Lira — contra a natureza do Poder que comanda.

Lira é transparente. Um devastador transparente (aqui também contemplado o abraço que a agenda legislativa tem dado nos interesses da grilagem). O presidente da Câmara nos informa que a sociedade entre bolsonarismo — para além do governo militar de Bolsonaro — e Centrão extrapola a objetividade da parceria eleitoral por 2022. A sociedade abrange também a linguagem. Uma sociedade baseada igualmente na corrosão da República. Lira é um dilapidador por dentro.

A ver o caso do distritão. Um modelo destrutor dos pilares da democracia representativa, que elege absolutamente os mais votados — em desprezo aos votos dados àqueles não eleitos e aos partidos. Um modelo que transforma a eleição ao Parlamento em majoritária — paraíso para o triunfo da força econômica, até mesmo do crime organizado, e para a permanência de quem está no poder. Um modelo que cultua o personalismo — a doença que resulta em populistas autoritários como Bolsonaro. Aliás, como Bolsonaro no curso de sua vida pública, para quem partido sempre foi mera exigência formal para ter mandatos, o distritão de Lira mina a lógica da organização partidária de ideias. Lira é um dilapidador, como seu sócio Bolsonaro.

(Quem se vira para pagar a conta desse arranjo o faz dilapidando; uma sociedade calcada na violação do teto de gastos. Paulo Guedes, o caloteiro, aquele liberal que quer tirar do credor, não raro governadores adversários do mito, para bancar a reeleição do chefe, é um dilapidador, investindo — sob a mesma lógica de Bolsonaro contra o sistema eleitoral — em desacreditar, desde dentro, órgãos do seu ministério, como o IBGE. É perverso. Ou haverá outra maneira de classificar o ato de um ministro — aquele que raspou o orçamento do instituto para a realização do censo — que semeia a descrença na cultura da pesquisa?)

Bolsonaro é um presidente da República que investe — sem cessar — contra a República. Contra o sistema por meio do qual se elegeu. Não está sequer minimamente preocupado com a forma como serão contados os votos. A carga pelo voto impresso serve-lhe somente de escada influente para atacar a confiança nos fundamentos da democracia liberal. Fará seu movimento — acusando fraude no processo —, ainda que consiga apurar urnas no espaço gourmet da mansão do senador Flávio.

É um destruidor, agente reacionário que se alimenta dos confrontos que forja artificialmente, mas a cujos assaltos, segundo o líder do governo na Câmara, Ricardo Barros, precisamos nos acostumar. Barros, também sócio, é um dilapidador. Se o golpismo húngaro de Bolsonaro não atrapalha os negócios, que a República se ajuste. Terá o amortecedor Ciro Nogueira a ajudar; aquele para quem “a política muitas vezes provoca choques, tremores e abalos”. A política? Provoca? Provoca choques? Não. Bolsonaro provoca — e deliberadamente. A política contempla negociação, dissenso, acordo — abarca conflitos. É um meio. Não um agente. (A política não coloca a mãe como suplente no Senado.) Mas a forma genérica — covarde — como o ora ministro responsabiliza a atividade política (pelo que são atos de Bolsonaro) está na origem da infecção que a criminalizou e que concorreu para a eleição de seu atual chefe. E que concorre para a reeleição.

Vejamos. Lira, sócio de Ciro, todos sócios de Bolsonaro, plantou — a respeito do voto impresso — que sua estratégia é enterrar o assunto com a rejeição da emenda pelo plenário da Câmara. Uma equação que não fecha. O presidente não moderará. E continuará a agredir, qualquer que seja a decisão do Parlamento. De modo que o que Lira faz — desqualificando a instância da Comissão Especial — é sustentar palanque institucional para que Bolsonaro prolongue e amplie a sopração de seu apito; é legitimar a mensagem conspiracionista do presidente.

Ah! Mas Lira falou com Bolsonaro e lhe disse que, se a PEC for rejeitada, não aceitará ruptura institucional — com o que se teria comprometido o presidente. Ok. Convém, entretanto, questionar o que será ruptura institucional para essa galera. Porque o homem está barbarizando, afirmando que não haverá eleição se não for do seu jeito. E Lira topa; talvez porque a fim de enfraquecer a Justiça Eleitoral, enquanto lhe arma reforma supressora de prerrogativas. Sócios.

Lira plantou também que, se Bolsonaro não cumprir a palavra, perderá o aliado; sendo o caso de perguntar no que isso consistiria. Devolverá cargos? Abrirá mão de gerir destinos do orçamento secreto? Pautará o impeachment?

Podem fazer desfilar os tanques velhos pela esplanada. Tudo certo. Sócios e dilapidadores.

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