O Estado de S. Paulo
O que está em jogo não é a economia, é a
defesa do estado de direito
O ano era 1982. Experimentávamos eleições
para governador no Brasil pela primeira vez desde
1960. Meu pai era candidato a deputado federal. Crianças, colávamos cartazes
nos postes. Mesmo conhecido e admirado pelos anos em que governou Goiás, ainda que como governador
“biônico”, era preciso fazer campanha, distribuindo “santinhos” e divulgando
seu nome e número naquele Estado grande que equivalia ao que são hoje Goiás
e Tocantins.
Apesar do nome difícil de escrever na
cédula impressa – Irapuan –, sua eleição foi fácil. Foi, então, o deputado mais
votado por Goiás. Em 1986, vieram outras eleições. Meu pai foi eleito para
o Senado e
minha mãe, para a Câmara Federal.
Eu já tinha 17 anos e fui designada para acompanhar a apuração dos votos.
Na cédula, além de “Irapuan” no espaço destinado ao candidato para o Senado, agora tínhamos de também identificar “Lúcia Vânia” onde deveria caber o nome para deputado (sim, assim sem “(a)”) federal. Naqueles papelotes jogados sobre a mesa de apuração e abertos um a um e repassados aos fiscais, não era fácil garantir que Lucivani ou Irampuã (para complicar, Iram era o nome do outro candidato ao Senado, também eleito) eram votos para eles, e não a serem anulados.
Mas de lá para cá avançamos. Na
alfabetização dos cidadãos, na identificação digital, na implantação de urnas
eletrônicas e na apuração mais rápida e mais segura. Entre vitórias e derrotas,
milhões de eleitores vão às urnas desde então, a cada dois anos. Em 2022, não
será diferente.
Mas não será fácil, como mostra este duro
2021. Na economia – que acompanha a política –, as expectativas de crescimento
econômico começam a soluçar, com 2022 entrando em zona de incerteza. A alta
da inflação fez
com que o Banco Central subisse os juros
para 5,25%, refletindo a reversão de uma das maiores conquistas econômicas
recentes. O desemprego, não por culpa do IBGE,
teima em não ceder e mostra 14,8 milhões de pessoas ao relento. Nessa mesma
esteira, as preocupações fiscais voltam à cena com as pressões renovadas por
mais – e mais eleitoreiros – gastos públicos.
O Bolsa Família virando Auxílio
Brasil, mais para turbinar votos do que para ajudar quem precisa, ressuscita o
onipresente “fura-teto”, enquanto a criatividade contábil de uma PEC
desarrazoada defende o parcelamento de dívidas reconhecidas em juízo como se
calote não fosse. O Orçamento continua
sendo distribuído com a nebulosidade das emendas de relator e uma não reforma
tributária busca o impossível, melhorar o sistema sem corrigir seus enormes
erros.
O salvador novo ciclo de commodities não
veio assim tão forte, num mundo ameaçado pela variante Delta. No Brasil, a
produtividade está estagnada, e a educação abandonada. Enquanto isso, a
desigualdade aumenta, e as condições de mobilidade social se deterioram ainda
mais. Mas o que tem ibope no Parlamento são a votação do Distritão e o fundo
eleitoral de R$ 5,7 bilhões, garantindo vantagem a quem se gaba de a cada
quatro ou oito anos se submeter ao “crivo das urnas”. Crivo existe quando há
igualdade de condições na seleção.
Mas não foram o quadro econômico
deteriorado ou os impactos negativos das incertezas políticas sobre as
perspectivas econômicas o que uniu mais de 25 mil pessoas em torno dos três
parágrafos do manifesto “Eleições serão respeitadas”, originado no Centro de
Debates de Políticas Públicas (CDPP). Foi a defesa da democracia. Foram o
repúdio ao retrocesso e a vontade de mostrar que a sociedade civil, embora
difusa e heterogênea em suas demandas, tem como amálgama os valores democráticos
que nos são tão caros.
Nesse contexto, a volta do voto impresso
que insiste em negar os avanços tecnológicos de um mundo moderno,
intrinsecamente digital, é um grande retrocesso. As urnas eletrônicas são
auditáveis e a segurança do sistema eleitoral deve avançar – assim como em
tantos outros processos sensíveis e relevantes – nos trilhos da crescente
digitalização e das ferramentas de segurança cibernética em pleno e constante
curso.
Afinal, o que está em jogo não é mais a
economia. É a defesa do estado de direito e o respeito às instituições, que são
o bastião da civilidade, dos direitos individuais e da liberdade.
Contrariando James Carville,
estrategista de campanha de Bill Clinton, que há quase 20 anos
cunhou o mote que desde então roda o mundo, não é a economia, estúpido. Mas,
sim, a defesa da democracia que nos une.
*Economista.
Nenhum comentário:
Postar um comentário