O Estado de S. Paulo
PEC 23 é uma ofensa aos princípios e regras fundamentais do arcabouço fiscal
As eleições presidenciais no Brasil
costumam atrair governantes para o tentador caminho das pedaladas fiscais. Foi
assim em 2014, quando lideranças do Poder Executivo produziram resultados
fiscais fictícios com a intenção de angariar votos, mostrando à sociedade um
retrato falso de contas públicas sob controle. O recente pacote de alterações
constitucionais apresentado pelo governo lembra as manobras criativas adotadas
naquele período para distorcer a situação fiscal do País. Só que desta vez os
truques se escondem nas estranhas de uma proposta de emenda constitucional
(PEC).
As pedaladas fiscais ficaram famosas no
processo de impeachment da presidente Dilma. Pode-se dizer que se referem a
atos ilegais praticados pelo Executivo em função de dois objetivos: driblar
regras de controle das contas públicas e apresentar um resultado fiscal melhor
do que o real. Entre 2012 e 2016, de fato, as projeções econômicas e fiscais do
governo federal foram ficando cada vez mais descoladas da realidade, revelando
uma gestão fiscal pouco transparente e despreocupada com a solidez das contas
públicas.
Já é sabido também que, em períodos de eleição,
os governantes e os políticos revelam preferência por políticas públicas que
aumentam suas chances de reeleição, deixando de lado preocupações sobre a
sustentabilidade fiscal dos programas governamentais. O resultado costuma ser
devastador: corrosão da credibilidade da política fiscal e alta na taxa de
juros cobrada para financiar o governo, combinadas com crise institucional,
social e econômica.
Desta vez, o Poder Executivo parece querer apostar na estratégia das pedaladas fiscais para vencer as eleições em 2022. Pelo menos passou essa impressão ao encaminhar ao Congresso a PEC n.º 23, basicamente alterando dispositivos constitucionais que tratam do regime de pagamento de precatórios e do processo orçamentário. Precatórios, para quem não conhece, são uma espécie de título emitido pelo governo para saldar uma dívida que nasce de uma sentença judicial. Em outras palavras, uma pessoa – física ou jurídica – ganha na Justiça o direito de receber uma quantia do governo, que, por sua vez, emite um precatório em favor dessa pessoa para assegurar o compromisso de pagamento dentro de um prazo exequível.
O volume de precatórios a serem pagos
cresceu vertiginosamente nos últimos anos, de R$ 54,7 bilhões em 2021 para R$
89,1 bilhões em 2022. Como são despesas computadas no teto de gastos – regra
constitucional criada em 2016 para limitar o aumento das despesas públicas –, o
governo precisa agir para evitar a paralisação da máquina pública. Afinal, não
há espaço fiscal para acomodar esse gasto extra com precatórios no teto,
mantendo também a administração pública em funcionamento.
Nota-se que a PEC n.º 23 compreende
alternativas para lidar com essa montanha de precatórios, mas sem perder de
vista a oportunidade de flexibilizar princípios orçamentários e regras de controle
do gasto. Claramente envolve mudanças constitucionais que, em última análise,
entregam a chave secreta do cofre guardado no Tesouro Nacional para o
presidente da República poder gastar na corrida eleitoral.
O texto encaminhado pelo governo apresenta basicamente
cinco partes: 1) Institui o parcelamento de pagamento de precatórios e
sentenças judiciais na administração pública federal; 2) altera o teto de
gastos a partir de triangulação de operações financeiras, com impacto fiscal
imprevisível; 3) flexibiliza importante dispositivo da Lei de Responsabilidade
Fiscal, que veda financiamento de gasto corrente com recursos derivados da
alienação de bens e direitos; 4) muda o desenho constitucional da regra de
ouro, enfraquecendo o controle das despesas correntes; e 5) autoriza a
capitalização de fundos por meio de transações extra orçamentárias, reduzindo a
transparência fiscal.
Sem espaço para explicar tecnicamente o
efeito de cada uma dessas mudanças, tenho preocupações em relação à PEC 23.
Como ex-ministro do Planejamento e relator constituinte do capítulo sobre
Finanças Públicas na Constituição, quero alertar as lideranças do Congresso
Nacional sobre os perigos dessa proposta, que, no formato originalmente
proposto, é uma ofensa aos princípios e regras fundamentais do arcabouço fiscal
construído desde a redemocratização.
Uma PEC que representa a
constitucionalização das pedaladas fiscais precisa ser reformulada no
Congresso. Sem dúvida, algo precisa ser feito para resolver o problema dos
precatórios. Contudo a solução não deve passar por mudanças que comprometam a
estrutura óssea do nosso arcabouço de regras e princípios fundamentais de
controle dos orçamentos.
A proposta do Executivo é invertebrada e
precisa ser aperfeiçoada no Congresso. Em vez dese constitucionalizara prática
das pedaladas fiscais, os parlamentares deveriam seguir o caminho da
transparência: excluir do controle do teto o excesso de precatórios para 2022,
cobrar do Poder Executivo providências para melhorara gestão de riscos fiscais
daqui em diante e honrar as dívidas com os precatoristas.
*Senador (PSDB-SP)
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