sexta-feira, 6 de agosto de 2021

Pedro Doria - Bush vs. Gore, versão brasileira

O Globo / O Estado de S. Paulo

Um adulto de 25 anos — e mesmo alguns de 30 ou mais — não tem memória de como eram as eleições no Brasil antes da urna eletrônica. Nosso histórico de fraudes é vasto. Não era raro, na Primeira República, presidentes eleitos com margens de ditadura árabe, para lá dos 90% dos votos. O velho Rui Barbosa, sempre o outsider concorrendo fora do esquema dos coronéis, que o diga. Mesmo na Nova República não havia eleição sem história de fraude. Não é este, porém, o debate que o presidente Jair Bolsonaro está levantando quando ataca as maquininhas do TSE. Ele está, em verdade, recauchutando de forma mambembe o antigo preconceito contra tecnologia digital. Um preconceito pelo qual a sociedade já passou e que dispensou. É como se o computador fosse uma caixa mágica e misteriosa. Melhor mesmo confiar no papel, que é seguro.

Não é um problema novo, tampouco misterioso. Qualquer consultoria de primeira linha passou a primeira década deste século, talvez os primeiros anos da década seguinte, ajudando empresas a enfrentar justamente essa dúvida. Quando preciso manter uma trilha em papel dos documentos que produzo — com assinaturas, com carimbos, só para ter certeza de que tudo estará lá quando for preciso? Mas já faz uns dez anos que a pergunta se tornou obsoleta.

A própria ideia de voto impresso atrelado à urna eletrônica foi imensamente debatida nos anos 2010 e chegou a alcançar o primeiro governo da ex-presidente Dilma Rousseff. Não é à toa que o período bate com a época em que empresas estavam tendo essa discussão. De lá para cá, as discussões são outras. São para acelerar o que chamamos de transformação digital.

O papel enquanto documento ficou para trás. O digital também documenta. Em certas condições, melhor.

O exemplo mais claro, que todos compreendemos rapidamente, é o dinheiro. Nosso dinheiro está se digitalizando de todas as formas. Cada vez usamos menos notas, cada vez mais pagamos com cartões, transferências — e a rápida adoção do Pix só mostra como a sociedade se habituou à ideia de o dinheiro ser digital. Não é só. Cada vez menos as pessoas sentem necessidade de ter o extrato em papel da conta-corrente, do cartão. Cada vez menos se pede o recibo impresso do pagamento. Chega ao celular na hora. Está sempre ali, no app financeiro. E, a partir do ano que vem, com Open Banking, talvez baste um app só para toda a nossa vida no que envolve dinheiro.

Mas não custa entreter a ideia do voto impresso pela urna. O primeiro problema são as impressoras, que necessariamente seriam como aquelas das maquininhas de cartão. Outra tecnologia tornaria financeiramente inviável. Primeira questão: são particularmente sensíveis à umidade. Vivemos num país tropical. As chuvas começam em outubro — época das eleições. Em ambiente muito úmido, tendem a embaralhar. Ao embaralhar, o mesário terá de ser chamado para botar em ordem. Ao fazê-lo, verá o voto mais recente e, assim, quebrará seu sigilo.

Parece um problema simples; não é.

Esses boletos também são fáceis de reproduzir. Ou seja, o antigo esquema brasileiro da troca de cédulas legítimas por falsas voltará em alguns bolsões mais inseguros do país. Se o resultado da urna eletrônica não bater com a contagem de papel, qual vale? Se um partido pedir recontagem dos votos de uma sessão, e o papel tiver sido danificado — é muito sensível a calor intenso, galpões brasileiros são quentes, e desmancha com água —, como se resolve? Numa eleição apertada como a de 2014, mexe em 1% dos votos, vira o resultado.

O voto impresso é a solução errada para um problema que nunca ninguém imaginou que existisse. Porque não existe. Queremos o Bush versus Gore brasileiro?

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