O Estado de S. Paulo
Ele já admitiu não ter esperanças de obter
o voto impresso, mas é a bandeira que lhe resta
Uma das afirmações mais engraçadas de
políticos no Brasil é a que prevê que o presidente Bolsonaro vai adotar
moderação nos seus contatos com adversários e a sociedade. Nada mais claro que
o projeto de confronto de Bolsonaro. Basta examinar o precedente de seu
inspirador nos Estados Unidos, Donald Trump.
Com antecedência, Trump previu a própria
derrota e iniciou um processo de questionamento do voto pelo correio e,
finalmente, de todo o sistema eleitoral norte-americano. Derrotado, Trump
inundou a Justiça com recursos contra a apuração. Perdeu todos, porque não se
constataram casos de fraude.
Logo em seguida, a chamada Alt-Right
(Direita Alternativa) fez aquela dramática tentativa de assalto ao Capitólio,
um dos fatos mais graves da História moderna americana, que terminou com mortes
e um grande desgaste internacional para uma democracia que parecia inabalável.
Derrotado em todos os passos acima mencionados, restou a Trump um importante consolo: cerca de 50% dos eleitores republicanos consideram que ele foi eleito e o processo eleitoral americano é desonesto. Esse é um roteiro que, na pior das hipóteses, garante ao derrotado continuar na imaginação dos seus eleitores, que o consideram, apesar de tudo, um vencedor.
Trump questionava o voto impresso, enviado
pelo correio. Bolsonaro questiona o voto eletrônico, que, por sinal, é muito
respeitado no Brasil não apenas por especialistas, mas pela quase totalidade
dos políticos que se submeteram a ele.
O roteiro é o mesmo. Ambos são vítimas da
própria ignorância ao negarem uma pandemia que se tornou um dos fatos mais
importantes do século. Ambos contam com militância aguerrida para questionar
violentamente a derrota. E, finalmente, ambos sonham em sobreviver como
vencedores na fantasia de seus adeptos.
No caso de Bolsonaro, há fatos singulares.
O primeiro deles é que questiona um sistema eleitoral internacionalmente
elogiado. Em segundo lugar, seu movimento foi captado pelos juízes que conduzem
o sistema e eles decidiram reagir aos ataques eivados de falsas informações.
Antecipadamente, Bolsonaro é investigado
pelo TSE por desacreditar o processo eleitoral. É uma medida defensiva que
desarma a engrenagem montada à semelhança da americana. Quando Bolsonaro
questionar o TSE por sua derrota, ele já estará na condição de alguém
investigado por inventar falsas teorias sobre o processo. Da mesma maneira,
como existe um inquérito no STF sobre fake news, ele estará sendo investigado
também em outro contexto, mas, no fundo, pelos mesmos motivos.
Outro diferencial no roteiro americano é
que a tentativa de invasão do Capitólio, no momento pós-eleitoral, foi
relativamente fácil de debelar, apesar de seu impacto político internacional.
Bolsonaro tem trabalhado muito para aumentar o número de pessoas armadas, tem
penetração em algumas Polícias Militares e as Forças Armadas brasileiras não
parecem tão decididas como as norte-americanas a se afirmar como um instrumento
de Estado.
Essa fase do roteiro, portanto, pode ser
mais complicada no Brasil. Mas não há nada que demonstre que Bolsonaro possa
ter a mesma resposta que Trump teve dos eleitores republicanos, embora um certo
contingente de fiéis vá continuar acreditando que ele perdeu por causa das
urnas eletrônicas, e não por causa de seu governo devastador.
Os primeiros dados do confronto estão
lançados. Nem o TSE nem o próprio STF vão reagir apenas com notas de repúdio,
apesar do trabalho diuturno do ministro Luís Roberto Barroso para demonstrar
não só a eficácia, mas também a segurança e auditabilidade do sistema
eleitoral. São movimentos complementares, muito mais eficazes do que simples
protestos burocráticos.
Faltam dois atores nesse drama republicano.
Um é o Congresso Nacional. Lira e Pacheco têm estado mudos. Mas a PEC do voto
impresso será votada, com derrota provável na comissão especial ou derrota
inevitável no plenário.
Outro ator silencioso é o procurador-geral
da República, Augusto Aras. Ele quer ser ministro do Supremo Tribunal, mas se
contentou até agora com a recondução ao cargo que ocupa. Apesar da pressão de
seus colaboradores na própria Procuradoria, Aras não se deve manifestar.
Há a convergência da defesa do TSE e da
votação no Congresso, mas seria uma ilusão supor que Bolsonaro vá abandonar
essa bandeira. Na verdade, é tudo o que lhe resta para unir seu eleitorado
fiel, disputar eleições e seguir com um discurso político, mesmo se for
esmagado nas urnas.
Num dos raros momentos de sinceridade,
Bolsonaro admitiu que não tem esperanças de conquistar o voto impresso. No
entanto, tem de seguir em frente com seu discurso de derrota antecipada porque,
paradoxalmente, admiti-la e se preparar para sobreviver a ela é o caminho que
escolheu.
Nada mais claro neste momento do que os
passos que Bolsonaro vai trilhar daqui para a frente. Apesar de ser um projeto
tão disruptivo para a democracia brasileira, não se pode dizer que seja oculto,
muito menos que não tenha havido tempo para se preparar, diante dele.
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