O Globo / O Estado de S. Paulo
A entrega da 'alma do governo' ao Centrão
deu mais nitidez às proporções da farra fiscal que está sendo tramada para 2022
Alega o ministro da Economia que só agora,
no início do oitavo mês do ano da graça de 2021, se deu conta de um terrível
“meteoro” prestes a colidir com a condução da política fiscal, em Brasília: uma
conta inesperada de R$ 89 bilhões de dívidas judiciais a ser paga no ano que
vem, R$ 35 bilhões acima da que está sendo paga este ano.
A alegada surpresa não parece ter sido mais
que espalhafato deliberado para dramatizar o “disparo de um míssil” contra o
“meteoro”, solução que o ministro agora preconiza para se livrar do entalo
fiscal em que se meteu: um calote a céu aberto das dívidas judiciais que teriam
de ser pagas em 2022.
Dívidas judiciais, também conhecidas como
precatórios, decorrem de sentenças em que o governo foi condenado, em caráter
irrecorrível, a ressarcir perdas que infligiu a particulares ou governos
subnacionais.
Uma correção de salário de um funcionário. Um reajuste de aposentadoria não concedido. Um carro destruído por um caminhão do governo. Um imóvel desapropriado por valor injusto. Um tributo pago indevidamente. Um governo subnacional que discorda dos valores de repasses a que teria direito.
Reclamado à Justiça o reconhecimento da
perda, cabe ao governo, caso perca a ação, inscrever o débito no Orçamento para
que seja pago no exercício seguinte. Em qualquer país minimamente civilizado,
assegura-se o direito à indenização por perdas impostas pelo Estado.
É bem verdade que, por aqui, já houve casos
de abusos em processos de indenização, com acusações de conluio entre
advogados, peritos judiciais, procuradores e até juízes, para assegurar valores
devidos absurdos. Em outros casos, o que predomina é incompetência e incúria.
Mal representado nesses processos, o erário
acaba obrigado a arcar com dívidas que, de início, eram perfeitamente
evitáveis.
Disso não se pode inferir, contudo, que
haja algo de intrinsecamente errado com as dívidas judiciais. A maior parte dos
processos envolvem indenizações defensáveis. O que não impede que, com
frequência, gestores dos três níveis de governo se arvorem no direito de tratar
dívidas judiciais como passivos de categoria inferior que, se possível, não
deveriam nem mesmo ser pagos.
Num quadro de gritante incoerência, que não
se vê em países mais sérios, as mesmas autoridades fazendárias que se empenham
em jurar, dia após dia, compromisso inarredável com o sagrado respeito ao
pagamento da dívida mobiliária, mostram-se propensas a manter, nos quartos do
fundo do governo, relações inaceitáveis com credores de dívidas judiciais. Ali,
o que prevalece é o atraso.
É o pago quando puder, a que o ministro
agora almeja com seu bombástico disparo de míssil.
É preciso ter em conta como foi mesmo que o
ministro da Economia se meteu no entalo em que se encontra. A verdade é que,
desde a aprovação da reforma previdenciária, todas as demais reformas, que
supostamente permitiriam manutenção do teto de gastos com ampliação do espaço
para despesas mais meritórias, redundaram em pouco ou nada.
Em grande medida, porque o presidente
Bolsonaro se permitiu solapar, de forma sistemática e escancarada, as reformas
fiscais prometidas.
Em meio ao aperto que agora enfrenta, o
ministro da Economia achou que o melhor que poderia fazer era colocar todas as
fichas numa suposta “folga fiscal” que adviria dos efeitos da aceleração da
inflação sobre a regra de reajuste do teto de gastos.
Nos últimos meses, contudo, enquanto a
“folga fiscal” esperada vem encolhendo, a “lista de compras” do governo para o
ano eleitoral de 2022 vem crescendo a olhos vistos.
A entrega da “alma do governo” ao Centrão
deu, afinal, mais nitidez às proporções da farra fiscal que está sendo tramada
para o ano que vem. Esse é o verdadeiro meteoro que está prestes a se chocar
com a condução da política fiscal, em Brasília.
Ao ministro da Economia, restou o triste papel de se virar para pagar as contas. Entalado como está, não teve melhor ideia do que perpetrar desajuizada pedalada olímpica, com calote descarado de dívida pública. Que País!
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