Valor Econômico
Ainda faltam duas condições para abertura
de impeachment
Quando o chefe do Poder Executivo ameaça
não cumprir decisões judiciais e nada o constrange, há algo de muito errado na
institucionalidade da República brasileira. Afinal, quem deve proteger a
sociedade de ameaças ao Estado democrático direito?
Na data em que se comemorou o 199º
aniversário da independência deste país, o presidente Jair Bolsonaro, eleito
pelo voto popular, por meio de urnas eletrônicas, processo que permite aos
brasileiros saberem quem ganhou a disputa em menos de três horas, algo que não
ocorre nem na maior democracia do planeta _ a dos Estados Unidos, pátria da Microsoft
e de outras gigantes do mercado de softwares _, ameaçou descumprir a
Constituição, a lei máxima do país promulgada em 1988.
Ao anunciar que não cumprirá eventuais
decisões tomadas pelo ministro Alexandre Moraes, do Supremo Tribunal Federal
(STF), que recado deu Bolsonaro aos milhões de brasileiros que, de forma
legítima, lhe conferiram mandato para assumir a presidência da República, e
também aos milhões que não votaram nele, mas aceitaram o resultado da eleição
porque, numa democracia, é assim que as coisas funcionam? É preciso desenhar ou
o distinto público entendeu que o temido golpe já começou a ser instaurado?
O que é golpe num Estado democrático de direito, senão, o desrespeito ao “império das leis”, que devem valer para todos. Ninguém, muito menos o presidente da República, está acima das leis. Golpe também ocorre quando um poder da República ameaça o funcionamento de outro poder, quando grupos da sociedade se organizam para, por meio da força, interromper o processo institucional, impedir que uma eleição ocorra.
É por isso que, em 1964, não houve
"revolução, mas, sim, um golpe militar, afinal, o que se fez foi
interromper a ordem constitucional instituída. As Forças Armadas, detentoras do
monopólio da violência, a serviço de setores políticos, derrubaram o presidente
eleito.
Jair Bolsonaro, ao ameaçar descumprir
decisões da instância máxima do Poder Judiciário, se predispõe a cometer crime
de responsabilidade. O artigo 85 da Constituição é cristalino como as águas dos
arrecifes da praia de Porto de Galinhas, em Ipojuca (PE), ao tipificar os
crimes de responsabilidade:
"São crimes de responsabilidade os
atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e,
especialmente, contra:
I _ a existência da União;
II _ o livre exercício do Poder
Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes
constitucionais das unidades da Federação;
III _ o exercício dos direitos políticos,
individuais e sociais;
IV _ a segurança interna do país;
V _ a probidade na administração;
VI _ a lei orçamentária;
VII _ o cumprimento das leis e das decisões
judiciais.
A Constituição de 1988, na verdade,
consagrou ipsis literis princípios
inscritos no artigo IV da Lei 1.079, de 1950. Só excluiu um inciso, o que dizia
que é crime de responsabilidade de um presidente da República atentar contra
"a guarda e o legal emprego dos dinheiros públicos” _ uma forma
edulcorada, daquele tempo, de dizer “roubar o erário público”.
A Constituição Federal estabelece que o
presidente da República será processado e julgado por crimes de responsabilidade
perante o Senado, após admitida acusação feita pela Câmara dos Deputados. Na
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, admitida a acusação pela Câmara,
não cabe ao Senado emitir novo juízo. A decisão da Câmara, portanto, vincula e
obriga o Senado a proceder ao julgamento do crime de responsabilidade.
Trata-se de uma enorme e grave distorção do
Estado de direito democrático brasileiro o fato de o presidente da Câmara dos
Deputados deter o poder monocrático de decidir se um processo de impeachment
contra o presidente da República deva ser tirado do escaninho. É evidente que
isso confere um poder desproporcional a apenas um ator da Praça dos Três
Poderes. Por outro lado, não se deve esperar que, diante de tamanha
responsabilidade, presidentes da Câmara usem esse poder de maneira
discricionária. Isto simplesmente não acontece.
Todo presidente é alvo de dezenas de
pedidos de impeachment. Isso faz parte até do folclore político nacional, qual
seja: grupos derrotados nas urnas entram com pedidos de afastamento do
presidente eleito no primeiro dia de seu mandato, assim, tivemos o “Fora
Collor”, o “Fora FHC”, o “Fora Lula”, o “Fora Dilma”, o “Fora Bolsonaro”.
Não foi por causa dessas iniciativas que
dois, dos cinco presidentes eleitos desde a redemocratização, sofreram
impeachment. Este é um processo político que, para sair da gaveta do presidente
da Câmara, precisa atender a três condições: uma de caráter jurídico, isto é, o
desrespeito às leis; apoio político; e o “clamor das ruas”.
Analisemos friamente o caso Bolsonaro:
Condição jurídica: as promessas de
descumprimento das leis criam, antes mesmo de os fatos virem a ocorrer,
materialidade que justifique abertura de processo por crime de
responsabilidade; isto, sem falar, que há quatro inquéritos contra o presidente
tramitando no Supremo Tribunal Federal.
Condição política: Bolsonaro, por mais
isolado que esteja e cada vez menos popular nas pesquisas de opinião, ainda tem
ao seu lado o principal agrupamento político-partidário do país neste momento _
o Centrão;
O “clamor” das ruas: o bolsonarismo fez
todos crerem que o 7 de setembro seria o dia D do golpe, com possíveis atos de
violência nas manifestações. Reconheça-se: o 7 de setembro, com todos os
atentados verbais de Bolsonaro e seus seguidores aos princípios democráticos,
transcorreram sem transgressão da ordem. Mais: mostraram que o presidente tem,
hoje, enorme capacidade para promover eventos de apoio a seu governo e a suas
perigosas ideias.
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