O Estado de S. Paulo
No 7 de Setembro, a democracia brasileira
apanhou, calada, de forma humilhante
Podem dizer que, depois dos comícios
golpistas de anteontem, o presidente da República encolheu. Podem dizer que ele
se isolou ainda mais ao bradar que não vai mais cumprir determinações do
Supremo Tribunal Federal. Podem dizer que empregou indevidamente recursos
públicos, como aviões e helicópteros, para promover atos de caráter
anti-institucional e antioficial. Podem dizer que seus pronunciamentos
incendiários e arruaceiros fazem dele mais um chefe de gangue do que um chefe
de Estado. Podem dizer que, em Brasília e, mais ainda, em São Paulo, ao
conclamar a audiência a xingar o Judiciário e ao chamar de “farsa” o sistema
eleitoral brasileiro, ele incorreu numa conduta de legalidade, no mínimo,
duvidosa. Podem dizer que o governante lancinante, ao agir como agiu, perdeu
apoios entre parlamentares e até mesmo entre os donos do dinheiro. Podem dizer
que o beócio comparecimento dos canarinhos fascistinhas não foi espontâneo, mas
anabolizado pelos latifundiários desmiolados – de zonas rurais ou urbanas,
tanto faz –, que cederam caminhões, lanchinhos e faixas propondo golpe de
Estado em letra de forma, em inglês e português (ruim). Podem dizer que o
presidente da República, sem máscara, no meio da aglomeração de suas plateias
de aluguel e de seus aduladores de boné, também sem máscara e sem dignidade,
atentou contra a saúde pública. Podem dizer que o vice-presidente e os ministros
empertigados no palanque assumiram que são cúmplices deste crime em progressão
desordenada.
Podem dizer tudo isso e, se disserem, não estarão mentindo. O presidente saiu do Sete de Setembro menor do que entrou, é fato. Sua malignidade intencional nunca esteve tão evidente. Depois de mais esse acesso antidemocrático, inviabilizou-se ainda mais. Suas investidas autoritárias perderam efetividade. Mesmo assim, no entanto, mesmo tendo gerado fraqueza ao tentar exibir força, o que aconteceu no Brasil no feriado que deveria festejar a independência nacional foi uma surra no Estado Democrático de Direito. A democracia brasileira apanhou de forma humilhante, foi insultada em praça pública, sofreu enxovalhos que não merecia, calada.
Então, a gente se pergunta: como pode isso?
Como pode um presidente da República fazer o que faz este que está aí? A nossa
democracia já não se respeita? Quando foi que passamos a engolir um chefe de
Estado que vai para o meio da rua, sobe num carro de som e chama de “canalhas”
os representantes de outro Poder? O que houve com os tais líderes da sociedade
civil que olham para isso e fazem cara de “as instituições funcionam
normalmente”? A nossa coluna vertebral cívica virou água de esgoto?
A medida do escândalo não está mais nas
alturas atingidas pelo volume das afrontas do chefe do Executivo, mas nos
abismos a que se rebaixa o cinismo do tal do “campo democrático”. Um dia, se
nos restarem dias, cobriremos o rosto de vergonha só de pensar no que está
acontecendo hoje. Como deixamos que o dito capitão ficasse tanto tempo no
cargo, praticando diariamente crimes de responsabilidade e destroçando vidas e
direitos?
Não nos esqueçamos: Dilma Rousseff foi
destituída em nome de umas tais “pedaladas fiscais” que nenhum
administrativista conseguiu explicar direito e nenhum cidadão conseguiu
entender; nem os parlamentares que votaram pelo impeachment de 2016 entenderam
aquilo lá. Agora, o atual presidente fala atrocidades várias vezes por dia e
nada acontece. Este é o pior de todos os escândalos: nada acontece.
O Brasil, que antes era um coro ensaiadinho
contra a impunidade dos corruptos, descambou numa gosma afeita à impunidade dos
que bombardeiam o edifício inteiro da Justiça. O mesmo país que buscava
aumentativos implacáveis para execrar a corrupção de ontem (“mensalão”,
“petrolão”) agora se resigna ao diminutivo afetivo para tolerar novos crimes.
Dizemos “rachadinhas”, mesmo sabendo que elas ocorrem em escala industrial, com
milicientas engrenagens engraxadas de sangue.
O Brasil só tem uma saída: votar o
impeachment de Bolsonaro. Não se pode contemporizar com o desgoverno do
morticínio, da inflação, do desemprego, da seca, do apagão, do negacionismo e
do culto das armas e da violência. Os setores de oposição que querem o
presidente na função até 2022 porque avaliam que, contra ele, será mais fácil
vencer nas urnas precisam entender que a democracia vale mais que um cálculo
eleitoral mal feito. O pessoal da dita “terceira via”, que só tem chance de ir
para o segundo turno se Bolsonaro estiver fora do páreo, precisa exigir o
impeachment já, mas não por uma agenda interesseira. Chega de esperteza
suicida.
Ou o tal do “campo democrático” mostra a
cara e se une, da direita à esquerda, para convocar atos públicos unificados
pelo impeachment, ou talvez não sobre democracia em 2022. Democracias morrem
também de morte morrida. Quando o tal do “campo democrático” decide aceitar o
inaceitável, a democracia começa a morrer. Se não fizermos nada, o Sete de
Setembro do ano que vem será pior.
*Jornalista, é professor da ECA-USP
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